
Em seus 30 anos de carreira, o russo Andrei Tarkovski foi premiado em Cannes, Veneza e construiu uma das filmografias mais influentes do século XX. Ainda assim, seu cinema nunca teve o alcance popular de um Kubrick ou um Buñuel – porque a maioria das pessoas tem medo daquilo que se tornou o principal traço definidor de sua obra: o tempo.
Para os preguiçosos do senso comum, ele é “lento”. Agora, para quem se debruça um pouco mais, como a professora Maria do Céu Diel, da Escola de Belas Artes da UFMG, ele simplesmente não é o tempo do deslocamento do ator na tela, e sim do nosso pensamento. “Não é um tempo linear. Não é o tempo do cinema norte-americano, da ação. É um tempo inteiro para que possamos entender e compartilhar o que o personagem está sentindo”, explica.
É esse mergulho que faz do cinema de Tarkovski uma experiência espiritual e metafísica. Um termo que foi diluído por todo aluno de cinema que viu um filme do russo na faculdade e achou que podia fazer igual, ligando uma câmera enquanto nada acontecia.
E para quem quer ver isso feito do jeito certo, a mostra “Tarkovski – O Eterno Retorno”, que começa nesta sexta-feira (20) no Cine Humberto Mauro, é imperdível. Até o dia 9 de fevereiro, a programação oferece a primeira retrospectiva completa do cineasta soviético no Brasil, exibindo seus 11 filmes – três curtas e oito longas – em cópias de 35 mm e DCP inéditas no país.
Para isso, a produção trouxe filmes da Rússia, da Itália, da Suécia e da França. “Foi uma produção bem complicada, mas valeu a pena: esses três primeiros curtas as pessoas não vão ver em lugar nenhum. E ‘Solaris’, ‘Stalker’, ‘Espelho’ e ‘A Infância de Ivan’ terão exibição em 35 mm e DCP”, ressalta o curador Philippe Ratton.
Além disso, o grande destaque da retrospectiva é a presença de uma série de convidados, entre acadêmicos e profissionais que trabalharam com Tarkovski, que ajudarão o público a decodificar o cinema do diretor. Na lista, estão nomes como o montador Michal Leszczylowski, o assistente de direção Evgeny Tsymbal, a cineasta Donatella Baglivo, além de Dmitry Salynski, maior especialista no cineasta no mundo todo, que ministrará um curso já esgotado (veja arte).
Para Maria do Céu Diel, que debaterá o documentário “Tempo de Viagem”, trata-se de uma chance única de derrubar o lugar-comum de que “Tarkovski é cult, difícil. Algumas pessoas têm medo dele, eu tenho medo de ‘Transformers’, aquela coisa horrível. Não preciso de alienígenas para saber que a gente não respondeu à maioria das perguntas aqui na Terra sobre por que estamos vivos, o que é memória, o que é amor, que é o que o Tarkovski queria entender”, defende.
O que torna a exploração que o cineasta faz dessas questões tão única, segundo ela, é que o russo pensava e tratava a arte como um “fenômeno total”. “Ele usa da pintura, da música, da gravura, da arquitetura, contempla todas as artes. E o Tarkovski não só filmava, como desenhava e escrevia lindamente. Esse tipo de pensamento alimenta as imagens dele”, analisa a professora.
O resultado é um cinema fortemente carregado de símbolos. “A água tem a simbologia do berço, origem da humanidade, mas também de força destrutiva. Quando ele mostra a terra, é sempre sintoma de pertencer a algum lugar. O ar é tingido, nebuloso, nunca claro. São elementos plásticos e simbólicos que ele manipula, recorrendo à natureza”, explica Maria.
E, para imergir nesse universo e captar esses sentidos, a sala escura – e a chance de ver esses filmes na tela grande – é fundamental. “São filmes feitos para serem vistos na sala de cinema. Em casa, onde for, é muito difícil entrar no tempo daquela experiência. Para ter essa reflexão e contemplação da poesia, é necessário um tempo para o espectador refletir sobre aquilo”, argumenta Ratton.
Quem quiser se aprofundar ainda mais nessa leitura pode procurar também o catálogo produzido pela mostra, com textos de todos os convidados e reproduções de polaroides do próprio Tarkovski. Ou se aventurar pelos outros filmes da mostra, de cineastas influenciadores (Ingmar Bergman) e influenciados (Terrence Malick, Chris Marker) pelo russo. “O cinema é uma experiência coletiva, porém individual, que tenta acessar nossas memórias por meio das imagens. A obra de Tarkovski oferece essa busca envolvendo nossa alma”, sintetiza Maria do Céu Diel.