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Bruno, por que o nome "Constelações Visionárias”? O que este nome representa para você no contexto do curso?
Brunno: “Constelações” é um termo caro ao filósofo, ensaísta e crítico alemão Walter Benjamin (1892-1940), um dos principais pensadores do nosso curso. A palavra, que vem do alemão Konstellation, aparece em diversos textos, como no ensaio dedicado ao colecionador Eduard Fuchs, escrito em 1934, e na tese de livre docência do Benjamin, intitulada A Origem do Drama Barroco Alemão de 1928. Trata-se, como diz Benjamin, em antever que “as ideias se relacionam com as coisas como as constelações com as estrelas”. De uma filosofia que transita entre uma leitura muito peculiar do marxismo e da teologia, especificamente a mística judaica, Benjamin diz que as suas teorias possuem “quarenta e nove degraus”, tal como na Cabala. Isto significa dizer que, ao contrário do pensamento racional instrumental, que é o nosso, utilizado tanto na ciência, como no cotidiano, e em outras filosofias racionalistas, devemos “alargar a percepção” de maneira em devolver a sensibilidade ali onde ela fora recalcada, para proporcionar, cada vez mais, intuições. Noutras palavras, trata-se em decifrar os sinais, os acontecimentos históricos, as forças de tendências, as potências e as virtualidades, que já se encontram no tempo presente, mas ainda não se configuraram em realidade. Num outro texto, desta vez no trabalho das Passagens (1928), ao analisar o capitalismo cultural do XIX, no contexto da Paris moderna, Benjamin diz que a Moda pode ser profícua para o pensamento e para o trabalho conceitual do filósofo, uma vez que ela antecipa tendências na política, na economia, nas artes, na cultura, na vida social, pois o seu método – o da Moda – é o da citação ao passado. Pensemos na coleção Mondrian de 1965 do costureiro Yves Saint Laurent (1936-2008), que cita a obra de um artista da década de 20, ou seja, mais de quarenta anos depois, atualizando-a. Temos aí, uma ideia de repetição ou do mito do “eterno retorno” dos acontecimentos históricos. Neste sentido, o curso “Constelações Visionárias: a relação entre Moda, Arte e Filosofia”, realiza a junção do conceito de constelações benjaminiano, com o de arqueologia e cartografia do filósofo francês Gilles Deleuze (1925-1995), para se repensar o processo de criação. O arqueólogo é aquele que volta aos arquivos para entender “o que nós deixamos de ser”, ao passo que o cartógrafo é aquele que sai às ruas para ler os sinais e o espírito do tempo. Tanto a Moda, como a Arte e a Filosofia necessitam de um diálogo com uma tradição histórica, portanto no passado, para a compreensão do presente, e para lançar “discretas esperanças” na prospecção (criação) de um futuro.
Qual o seu intuito em colocar a relação entre esses temas de forma à organizar e instigar o pensamento crítico? Qual o seu objetivo?
Brunno: O que é o pensamento crítico? É o pensamento que se volta contra o próprio pensamento, ou, dito de outro modo, é o pensamento que questiona a si próprio: “o que estamos fazendo? Para onde estamos caminhando? Qual a importância disso ou daquilo?”. Quando começamos a pesquisa em 2012, ainda ao lado do estilista brasileiro Walter Rodrigues, já apontávamos questões que hoje se tornaram pertinentes e urgentes, como a desaceleração no modo de produção no fast fashion, e uma retomada do artesanal e do autoral, a questão dos gêneros, e do repensar as formas do corpo em seus binarismos, e o próprio sentido da Moda no contemporâneo, em sua antiga raiz etimológica de “modus” como comportamento social. Ora, todas as mudanças numa sociedade só são possíveis a partir deste exaustivo trabalho de reflexão, de inquietação no pensamento, de voltar o pensamento contra ele mesmo. Neste sentido, a pesquisa procura estabelecer a relação da Moda com outras disciplinas e esferas do pensamento. A divisão dos saberes, a especialização, a técnica pela técnica (que já nasce obsoleta), não são os caminhos, penso eu, que constroem o verdadeiro artista criador, seja ele nas artes plásticas, na fotografia, no cinema, no teatro e na Moda. Cada vez mais, as escolas têm optado pelo caminho da “burocratização do saber”, que é responder uma demanda imediata no mercado de trabalho. O estudante sai do curso precário não só tecnicamente, como em termos de repertório artístico, cultural filosófico, sociológico. Claro que existem exceções, e não seria ético citá-las. Na Escola da Antuérpia, por exemplo, responsável pelo movimento da década de 80/90 – Martin Margiela, p. ex – logo no primeiro ano do curso, o aluno tem disciplinas como “Literatura Mundial” e “Filosofia”. Para que servem as ciências do espírito? Sua ação não é a imediata, mas é o alargar a percepção e a sensibilidade, num longo espaço de tempo, para que o criador “intua” quais são os desenhos dos caminhos de sua época, do espírito de sua época.
Para você, a moda está também relacionada sobre como a pessoa quer ser vista enquanto personalidade no mundo? Ela seria o "cartão de visitas"?
Brunno: Penso que a pergunta pode ser respondida de duas maneiras, que trabalhamos nas discussões do curso e da pesquisa. A primeira é pensar a Moda como “medida dos gostos” (às vezes, do mau gosto!). Neste sentido, cada temporada ou cada imagem de moda, proposta de criação, carrega em si, na sua essência, uma proposta de renovação espiritual da sensibilidade de uma época. A Moda, nestes termos, é uma “instituição não instituída”, pois direciona e propõe a relação do homem contemporâneo com o órgão do sentido, o olho, e com o que é estético. Ao mesmo “tempo”, e penso na crítica de Jean-Jacques Rousseau (1712-1778), no século XVIII, ao gosto na sociedade, neste espaço de “aparência” e de polidez, como uma negação da autenticidade do indivíduo. Se for verdade que a Moda institui a “medida do gosto” de uma época, geração, temporalidade histórica, significa que a tarefa da Moda na sociedade é a de igualar o comportamento. Ora, uma das vantagens de se trabalhar com um pensador como o Walter Benjamin é o de sempre tentar subir os “quarenta e nove degraus” de sua escada cabalística, ou de perceber que as coisas possuem múltiplos e infinitos sentidos. Podemos pensar numa espécie de ruptura com esta “medida do gosto”, a partir daquilo que a Profa. Gilda de Mello e Souza da USP (Universidade de São Paulo) chamou de “caligrafia dos gestos”, e Gilles Lipovetsky de “finalidade existencial” da Moda. Encontramos estes dois conceitos na estetização da existência proposta pelo dândi no século XIX. O que significam “caligrafia dos gestos” e “finalidade existencial”, pensadas no dandismo? O dândi, como herdeiro dos aristois (aristocratas), no sentido não econômico, mas de refinamento da alma, dispensam qualquer divisa entre essência e aparência, aquilo que vestem são a tradução exata do refinamento de sua alma, de sua espiritualidade. Se Oscar Wilde chocou a sociedade londrina foi não somente por suas roupas extravagantes, distantes da realidade estética da Era Vitoriana, mas por seus pontos de vistas, sua “filosofia”, sua literatura, seu modo de vida.
A arte, a moda e filosofia tratam com certeza de criatividade, mas às vezes me parece que os ligados à filosofia são um pouco avessos à esta afirmação, colocando a moda como "algo bem menor", como você encara isso? Porque isso acontece?
Brunno: Esta visão de “pequenos nadas” na História (a escrita com H maiúsculo é uma provocação), vem da tradição filosófica Iluminista no século XVIII, e, se recuarmos mais ainda, da própria tradição platônico-aristotélica. Mas bem, fiquemos com o Iluminismo. Que pretendia o “século das Luzes”? Emancipar a humanidade, tirando-a de sua condição de “menoridade autoimposta”, por meio da Razão, livrando-a dos dogmas, das superstições, das paixões da alma, das opiniões e das falsas necessidades. Ora, a Razão, historicamente, é aquilo que dá medida ao que é, por essência, desmedida, a própria alma, e a alma, pela paixão, é o que deseja. Toda a crítica rousseauniana, e de outros pensadores iluministas, à sociedade como reino da “falsa aparência” caminha neste sentido. A Moda, para ele, aliada aos padrões de comportamento da sociedade levam o indivíduo a uma não emancipação, portanto não liberdade, pois o condiciona às falsas opiniões e necessidades a partir do olhar de aprovação do Outro, seja ele outro indivíduo ou um criador de Moda, que determina o “gosto vigente”. A crítica se extremiza com o marxismo vulgar, muito distante do próprio Marx, na qual a Moda seria um dispositivo da burguesia para controlar a classe trabalhadora. É a visão da “distinção” em Bordieu, no limite, mas que não se justifica inteiramente! Walter Benjamin, apesar de ser marxista, oscila entre as duas tendências: concorda e discorda com esta visão unilateral da Moda, como “dispositivo de controle”. Como citado acima, a Moda pode, inclusive, diz ele, ter um caráter revolucionário, não só no que diz respeito à revelação de futuras tendências, mas, ao trazer as imagens do passado para o presente – a velha inspiração numa criação -, ela é capaz de aliviar a amnesia de nosso tempo. É como se as imagens de releituras da Moda fossem museus ou caixas de lembranças sobre os nossos antepassados, seus fracassos, glórias, desejos e percepções do mundo. Qualquer objeto de pesquisa e de investigação pode ser menor, se não receber o devido tratamento e a devida seriedade. Na pesquisa e no curso, trabalhamos a roupa e a Moda como alegorias, no sentido de allo-agorein, “um dizer de outro modo”. Significa, nesta ideia, em extrair da roupa e da Moda o que ela contém de reflexão filosófica, e para o nosso tempo, como os conceitos de identidade, gêneros, tempo, consciência, aparência, essência, etc.
5. Qual a importância da tendência Agender no mundo contemporâneo? Esta tendência é apenas um modismo, ou ela ajuda a transformar o modo como nos relacionamos?
Brunno: Particularmente espero que não seja uma tendência efêmera. Estamos falando das mesmas coisas, vestindo as mesmas roupas, nos relacionando com o mundo da mesma forma há pelo menos 200 anos, desde a emancipação da burguesia, como classe dominante no pós Revolução Francesa! Não dá mais! A tarefa do curso é a de desmistificar o Agender como uma tendência passageira, e mostrar que a possibilidade desta nova maneira de se relacionar com o corpo, com os gêneros e com a aparência de si mesmo, está em curso, no ocidente, desde, pelo menos, o século XIX, com os escritos de Nietzsche, passando pelo poeta Charles Baudelaire, os artistas modernistas que repensaram e a reinventaram as formas do corpo, Simone de Beauvoir, Michel Foucault e Judith Butler com o seu conceito de performatividade, até os costureiros japoneses da década de 80 e os belgas na década de 90. Daí a importância da formação crítica e do espírito que a pesquisa e o curso propõem: entender como, no presente, as coisas foram possíveis, como chegamos até determinado ponto. Entender que há um repensar as formas do corpo no Ageneder - e é com o corpo que se pensa – significa dizer que estamos repensando a nossa própria maneira de pensar.
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