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Tereza Costa Rêgo: Pintura escrita em vermelho - Guia das Artes
Tereza Costa Rêgo: Pintura escrita em vermelho
Tereza Costa Rêgo: Pintura escrita em vermelho
O Museu Cais do Sertão celebra cinco décadas de trabalho da artista que quebrou o discurso masculino da pintura moderna de Pernambuco
inserido em 2020-03-02 19:10:27
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Tereza Costa Rêgo pinta com o corpo. “Vou até não aguentar. Dói. Deito até passar e começo de novo”, diz a artista de 90 anos que há quatro realizou aquele que considera seu último grande painel. “Há anos a história martelava minha cabeça.

Havia chegado a hora de vomitá-la”, diz ela, sobre a versão do episódio das Heroínas de Tejucupapo pintada sobre a grande superfície de 8 x 2 metros. Com cores trágicas como numa guerra de Goya, Tereza confirma ser o principal nome do modernismo pernambucano ao reler o mito popular de Tejucupapo: quatro mulheres, quatro marias, acuadas, teriam liderado uma brigada comunitária contra o exército holandês nesse vilarejo ao norte do Recife. “Se a batalha aconteceu, não importa. Importa que o mito ficou”, diz ela, ciente de ter impresso a sua Guernica particular. “Continuo pintando, mas sei: jamais voltarei a fazer algo tão grande.”

Tejucupapo (2015) é um dos destaques da panorâmica de seus 90 anos, prevista para a segunda semana de dezembro, no Museu Cais do Sertão, no casco histórico do Recife Antigo. Com curadoria do carioca Marcus Lontra, obras recentes serão exibidas ao lado de mais de cinco décadas de pintura. “Achei que, na idade em que estou, estaria descendo, mas sinto que há muitos degraus a subir”, diz a artista, diariamente, depois de uma xícara de café, dedicada aos cavaletes no ateliê de sua residência em Olinda.

Tereza vai se fazendo contemporânea sem nunca ter deixado de ser conscientemente moderna: “Sim, sou cria do modernismo”. Filha de uma família da já decadente aristocracia do açúcar, bisneta do Conde da Boa Vista, que batiza a principal avenida do Centro do Recife, a pequena Terezinha Barros Costa Rêgo seguia a agenda das meninas de sua classe social. Tocava piano e aprendia pintura. Aos 15, estava matriculada na Escola de Belas Artes do Recife. “Minha família tinha uma formação muito pesada judaico-cristã. Tudo era pecado, não podia assistir às aulas de modelos nu”, ela ri.

Na escola, travaria amizade com alunos que, como ela, se tornariam verbetes fundamentais do Modernismo Pernambucano. Entre os colegas, os jovens Francisco Brennand, Aloísio Magalhães e Reynaldo Fonseca. Professores, Vicente do Rêgo Monteiro e Lula Cardoso Ayres incentivavam a assimilar cores e elementos da paisagem popular pernambucana. Tereza era estimulada a abandonar dogmas acadêmicos, como dividir o espaçamento em três para garantir harmonia com o objeto principal numa das interseções. “Lula Cardoso Ayres começou a soltar meus traços, foi a porta para a minha abertura.”

Insolação e saturação
Sua pintura confirmaria a principal característica do modernismo de sotaque pernambucano, escola que não se deixaria afetar pelo ideário abstratificante concreto e neoconcreto dos anos 1950. Tereza seguiria uma convicta figurativista. Na paleta, a confirmação da hipótese de críticos como Paulo Herkenhoff e Clarissa Diniz para o fato de que o Modernismo Pernambucano, afetado pelas cores locais e pela insolação tropical, seria eminentemente mais saturado em relação à arte moderna de matriz paulistana. Sua pintura se escreve em vermelho. “Sim, eu acho que essa luz regional influencia. Não me pergunte por que, não sei pintar em azul, nem em tons cálidos.”

Desde sempre, sua pintura se mistura à vida. A artista gosta de dizer que foi educada para “enfeitar o piano da sala”. Mãe de duas filhas e casada com uma proeminente figura do meio jurídico, conhece, na sala do casarão em que vivia e por onde gravitava parte da sociedade local, o dirigente de esquerda Diógenes Arruda. Preso e torturado pela ditadura Vargas, Arruda era uma espécie de mito vivo. Ali, ela diz, “o piano se quebrou de vez”: Tereza larga o casamento, sofre toda a má sorte de preconceitos patriarcais e, com o companheiro, amarga 12 anos de exílio entre o Chile, Lisboa e Paris, onde finalmente se radica.

Mas o acaso, se o acaso existe, escreveria um novo capítulo para a sua arte. Com a anistia, o casal volta ao Brasil. Como não suportasse a emoção da volta, num dos primeiros atos públicos no fim da ditadura, Arruda é fulminado por um infarto numa via pública de São Paulo. Tereza enxuga as lágrimas com uma decisão: “Ali, ele morto, nos meus braços, decidi, seria Tereza Costa Rêgo, uma mulher e sua pintura”. 

A pintora muda-se com seu luto para Olinda, cidade onde uma entusiasmada comunidade de artistas transforma antigos sobrados em ateliês. “Sou uma filha de Olinda. Aqui, de fato, me fiz artista.” Consagrada localmente, chegou a ser convidada para uma panorâmica de sua obra, uma década atrás, na Pinacoteca de São Paulo. Após acenar positivamente ao diretor Emanuel Araujo, declinou. “Acho que, no íntimo, não estava preparada. Talvez quisesse continuar me afirmando em Olinda. Esta cidade é a minha pátria.”

Sobre a cabeceira da cama, a artista mantém a principal recordação do parto existencial a que se viu obrigada. No quadro A Partida (1981), uma mulher de cabelos lânguidos debruça-se sobre o corpo morto de um homem grisalho. Ao fundo da tela estão colados os bilhetes escritos em filtros de cigarro Minister com os quais, preso novamente pelo governo Médici, Arruda escrevia recados trazidos por Tereza nas voltas do cabelo a cada visita ao companheiro na prisão. “Pintei depois que me vi numa foto de jornal sobre Diógenes morto. É uma espécie de Pietá particular.”

Nudez e envenenamento
Sozinha e em renascimento, Tereza passaria a compor a grande comunidade de mulheres despidas que morariam em seus quadros – mulheres de uma nudez altiva quebrando o discurso predominantemente masculino da pintura moderna de Pernambuco. O primeiro deles, literalmente batizado de Primeiro Nu (1983), traz a vulva afirmativa de uma personagem monumentalmente desproporcional, os joelhos e as pernas agigantados. “A pintura de Tereza é também a pintura da libertação da mulher”, confirma Marcus Lontra. “Tereza é essa mulher do domínio do corpo, não é mais a fêmea submissa, mas a mulher do orgasmo conquistado.”

Ter vivido a história do século 20 não lhe passaria incólume. Uma de suas séries mais contundentes, Sete Luas de Sangue (2000) traz, como marca de sua poética, episódios da história brasileira teatralizados em cores épicas. A série é um discurso caleidoscópico sobre fatos – da Batalha dos Guararapes a Palmares, de Canudos a Vargas – definidores da brasilidade. “Como Portinari, Tereza tem a dimensão do épico”, comenta Lontra, também diretor à frente do Museu de Arte Moderna Aloísio Magalhães quando a instituição recifense expôs, no ano 2000, os sete grandes painéis.

A partir da redemocratização do País, a pintura de Tereza se agigantaria. Inspirada pelo muralismo mexicano, saía, ao lado de colegas pernambucanos, pintando paredes e muros. Chamado de Brigada Portinari, o movimento tinha não apenas o objetivo de contribuir para a eleição de Miguel Arraes para governador de Pernambuco, também de volta do exílio, como também democratizar a arte além do circuito de galerias e museus. “Dali meus gestos foram se ampliando, até nunca mais encurtarem. Meus quadros passaram a ter tamanhos cada vez maiores.”

Com nove décadas de vida em plena atividade, Tereza continua usando, além das tintas e da biografia pouco comum tatuada nas memórias, a própria saliva para reler o mundo. “A saliva dá uma textura que não se consegue de outra forma. Quando começo a pintar e menos espero, estou com o pincel na boca. E é perigoso, porque posso me envenenar né?”, ela diz.  Se esse é o risco, ela segue. “Pintar, em alguma medida, é sempre se envenenar.”

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