Quando o clique vale mais que o quadro: a arte ferida pela cultura do meme
Redação Guia das Artes
Na última semana, o século XVIII perdeu — ainda que temporariamente — mais uma batalha para o século XXI.
Na prestigiada Galeria Uffizi, em Florença, uma pintura de 1712 foi rasgada após um visitante tropeçar e cair sobre a obra enquanto tentava “fazer um meme” imitando a pose do retratado. O quadro, um retrato de Ferdinando de Medici assinado por Anton Domenico Gabbiani, resistiu por mais de 300 anos — até ser vencido por uma foto mal calculada.
As imagens das câmeras de segurança, divulgadas pela imprensa italiana, mostram o homem se inclinando para trás diante da tela — tentativa claramente performática — antes de perder o equilíbrio e colidir com a obra. O dano: um rasgo visível, quase simbólico, no tecido da própria relação contemporânea com o patrimônio cultural.
A direção do museu não minimizou o ocorrido. Em comunicado à imprensa, Simone Verde, diretora da Galeria Uffizi, declarou:
“O problema dos visitantes que vêm aos museus para fazer memes ou selfies é galopante.”
A instituição agora considera impor novas regras de comportamento, estabelecendo limites mais rígidos para proteger o acervo do impulso exibicionista.
E o caso de Florença não foi isolado. Poucos dias antes, turistas em Verona destruíram uma cadeira de cristal do artista Nicola Bolla no Palazzo Maffei ao tentarem posar para uma foto com a obra.
“É o pior pesadelo de um museu”, lamentou Vanessa Carlon, diretora da instituição.
A busca por likes e viralizações vem transformando museus — antes templos de contemplação — em sets de gravação improvisados. Nesse novo palco, o gesto de se conectar com a arte é substituído pelo impulso de performar diante dela.
A pintura de Gabbiani está em restauração, e a exposição — com cerca de 150 obras do século XVIII, incluindo nomes como Goya, Tiepolo e Canaletto — deve ser reaberta ao público no dia 2 de julho. Mas a ferida simbólica permanece: quando o desejo de aparecer ultrapassa o desejo de compreender, quem sai machucada é a própria arte.
Talvez estejamos diante de uma nova urgência curatorial: proteger as obras não apenas do tempo, mas também do ego.