Quando foi convidado para criar um pavilhão dentro da Exposição Mundial de 1939, o artista catalão Salvador Dali não mediu esforços nem limites para ocupar um espaço tão grande com a livre explosão de sua mais impactante imaginação.
A feira aconteceu no verão em Flushing Meadow, no bairro do Queens, em Nova York, e o pavilhão de Dali, batizado de “Dream of Venus”, ou Sonho da Vênus, trouxe a fina flor do repertório surrealista – saltando das telas para as três dimensões da vida real – e, como não poderia deixar de ser, causou polêmica, debate, censura e protesto capitaneado pelo artista contra os organizadores da exposição.

“Sonho da Vênus”, o pavilhão de Dali na Exposição, em 1939

Dali e sua esposa, Gala, em peça na entrada do pavilhão
O espaço foi transformado em uma espécie de “Casa de Diversões”, como nos parques, mas no lugar de espelhos tortos, distorções óticas, ondulações nos pisos, paredes falsas e escorregas, o pavilhão de Dali trazia esculturas, instalações e performances cheias de simbolismos e significados, calcados na expressiva e mesmo violenta força da estética surrealista. O próprio prédio já era inteiramente adornado com braços, galhos e corpos “nascendo” das paredes e janelas, e para entrar no local era necessário passar pelo meio de um par de pernas femininas, que serviam como a moldura da porta, com a saia levantada acima dos joelhos.

Detalhe da porta, com as pernas e a Vênus de Botticelli

Um taxi no interior da instalação surrealista
Camas, gaiolas, tigres e lagostas dentro do “sonho”
Dentro do “Sonho da Vênus”, a típica sobreposição de imagens e símbolos que costuma caracterizar o repertório surrealista – com carros cobertos por plantas, camas e espelhos adornados por lagostas, flores e gaiolas, pianos nos quais as teclas eram pintadas sobre corpos, e mais – escandalizava os curiosos, não somente pela construção estética, mas pela grande quantidade de mulheres nuas que atuavam na instalação em performance. Deitadas sobre as camas e nadando dentro de grandes tanques com água, as atrizes, em sua maioria com os seios expostos, tornavam o pavilhão ainda mais em motivo de escândalo – e sucesso, ocorrido no mesmo ano em que se iniciaria a Segunda Guerra Mundial.

“Mulheres líquidas”: algumas modelos permaneciam em tanques com água durante as visitas

A nudez parcial das modelos causava escândalo em 1939
Acima da entrada do prédio, uma reconstrução em larga escala da Vênus, de Botticelli, recebia os visitantes, mas a intensão original do artista era substituir a cabeça da icônica imagem pela cabeça de um peixe – e essa foi uma das muitas ideias rejeitadas pela organização da Exposição Mundial. A acusação de censura levantada pelo artista contra o evento levou Dali a se posicionar, mantendo a exuberância e a grandiosidade que sempre lhe foram peculiares: após mandar imprimir milhares de panfletos com um manifesto impresso, o artista contratou um avião para sobrevoar as instalações da Exposição e lançar os papeis dos céus.

A Vênus sonhando: o local tinha camas com modelos dormindo

A “mulher-piano”, cujo corpo era pintado como as teclas do instrumento
Intitulado “Declaração de independência da imaginação e pelos direitos do ser humano sobre sua própria loucura”, o manifesto de Dali trazia a imagem da Vênus de Botticelli com a cabeça de peixe na capa, e defendia a liberdade afirmando, entre muitas outras passagens, que “somente a violência e a duração de seus sonhos enrijecidos podem resistir à horrenda e mecânica civilização que é sua inimiga, e que também é inimiga do ‘princípio de prazer’ de toda a humanidade”, como escreveu Salvador Dali, defendendo que todos têm direito a “amar uma mulher com uma cabeça de peixe”. Por anos, o Pavilhão de 1939 do artista permaneceu sem maiores registros, quase como se fosse uma lenda urbana: fotos e mesmo vídeos recentes, porém, comprovaram a veracidade – e a radicalidade – proposta pelo artista para a feira internacional.

A capa do panfleto lançado por Dali de um avião sobre a Feira, em protesto
Fonte: Hypeness