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Palavras Pinceladas - Guia das Artes
Palavras Pinceladas
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Nota: Queridos leitores, desta vez não falarei de uma obra literária que inspirou pintores ou ilustradores, diretores de cinema, roteiristas. A coluna deste mês traz um escritor escondido por trás de um pintor. Aqui vai minha humilde carta para ele.
inserido em 2018-03-16 19:00:42
Advogada e escritora. Carioca com coração mineiro.
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Querido Vincent,

 

Desculpe-me por não entendê-lo...

Somente depois dos meus quarenta é que o mundo (com sua mania de girar) me trouxe mais uma vez até você e agora, com olhos menos rasos finalmente te vejo. Nós que somos filhos de tempos tão diferentes; você: holandês, nascido no século XIX, obstinado, disciplinado, com um olhar absolutamente isento de preconceitos, e genial; eu: brasileira, nascida no século XX, num país subdesenvolvido, indisciplinada, lutando para não me deixar contaminar com o apelo da estética plastificada em que as mulheres da minha geração teimam em mergulhar. Apesar disso, e de tantas outras diferenças que nos separam, ouso dizer que somos parecidos em uma coisa, talvez uma que nos faz humanamente interessantes: somos perseguidores da arte. Só que você, querido Vincent, já deixou seu legado. E que legado! Mais de dois mil trabalhos – incluindo pinturas e desenhos – executados em menos de uma década. No entanto, Vince (olha só a minha brasileirice criando intimidade entre nós), são as cartas que você escreveu - grande parte delas para o seu querido irmão Théo - o que mais me liga à você. Além, é claro, da arte que sua generosa persistência deixou para nós. Posso, com muita dificuldade, escolher frases extraídas dessas delicadas cartas como se fossem epitáfios:

“É bom amar tanto quanto possamos, pois nisso consiste a verdadeira força, e aquele que ama muito realiza grandes coisas e é capaz, e o que se faz por amor está bem feito.”

Se eu soubesse que por trás daquele quadro de girassóis esmaecidos e enfiados num jarro simples, havia um coração em pedaços; ou se dentro de mim as estrelas brilhassem tanto quanto em sua tela Starry Night, se eu tivesse coragem para pintar mulheres de seios murchos e feições condoídas, quem sabe assim, estaria pronta desde muito cedo para amá-lo, querido Van Gogh. Mas fiquei tanto tempo ignorando sua história, apegada apenas ao fato de sua orelha cortada representar um tipo de coisa a ser por mim evitada: a loucura, que fui vivendo sem você. Quanta inocência a minha, acreditar que a arte pode nascer longe da insanidade dos homens! Com você aprendi que a arte só existe como forma de sobrevivência à loucura dos homens, e em suas cartas, tão cheias de lições, tão cheias de apelos, tão cheias de sua inesgotável generosidade materializei esse aprendizado. Ainda bem que o Théo, seu amado irmão, jamais desistiu de você e entendeu sua necessidade da natureza, sua inaptidão para viver em Paris ou Londres o ajudando a se manter no meio de gente simples e colinas de verde abundante. Théo, para quem você contou quase tudo, sabia quem realmente era Vincent Van Gogh e apostou no que havia dentro de ti para ser doado ao mundo. Acho que as cartas foram seu primeiro trabalho como artista e Théo entreviu a arte por meio delas. Afinal, Vincent, você também é um escritor. Um intenso escritor. E como não reconhecer isso em alguém que nos diz: “Independente de qualquer revolução violenta, também haverá uma revolução íntima e secreta nas pessoas, da qual ressurgirá uma nova religião, ou melhor, algo totalmente novo, que não terá nome, mas que terá o mesmo efeito de consolar, de tornar a vida possível...”

Quando Don Mc Lean compôs a canção: Vincent, mais conhecida como Starry Starry Night, estava escrevendo uma carta de agradecimento à você, uma carta de amor que é o que os compositores escrevem para o mundo; cartas de amor. É sempre a maneira como eles veem o outro, seus sentimentos, suas singelezas. Don, naquela manhã em 1972 escreveu inspirado por você, Vincent, após ler uma das tantas biografias que já escreveram sobre você. Eu, aqui no Brasil, em Março de 2018, escrevo sobre você e sobre a canção de Don Mc Lean para você e também sobre as suas cartas para Théo. Assim é a arte, Vincent querido, manjedoura de todos nós que a invocamos e você sempre soube disso, não é?

Obrigada por tudo!

Carinhosamente ,

Gabriela Maya.

 

Vincent Van Gogh nasceu em Zundert, Holanda, no dia 30 de março de 1853 e faleceu aos 38 anos em Auvers-sur-Oise, arredores de Paris, em 29 de julho de 1890. É considerado um dos maiores pintores de todos os tempos e conhecido por episódios fortes de sua vida conturbada. No entanto, as cartas que escreveu ao longo de sua curta vida, muitas vezes passam despercebidas por seus admiradores. Sua arte inspirou filmes, documentários, outras telas, métodos de pintura, e livros; um deles: Cartas à Théo, que reúne grande número de cartas que escrevia para seu irmão mais novo, a maioria entre os anos 1873 a 1890.

 

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