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Miep Gies - Guia das Artes
Miep Gies
Miep Gies
inserido em 2022-08-15 18:49:08
Advogada e escritora. Carioca com coração mineiro.
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Há pessoas que mereciam homenagens constantes, mesmo após a morte. Miep Gies é uma
delas. Em tempos onde as notícias parecem descreditar a humanidade a todo o instante,
entendo que devemos acender os holofotes sobre gestos de pessoas fantásticas. Há cinco anos
escrevo para o Guia das Artes. O convite feito por minha querida Flor Pimentel, gestora do
site, trouxe-me o desafio de escrever artigos sobre a relação da arte com a literatura, sendo
esta última espécie do gênero Arte. Até hoje escrevi sobre figuras proeminentes, todas elas já
consagradas por públicos seculares, como foi o caso de Miguel de Cervantes. Contudo,
entendo que é chegada a hora de trazer ao nosso leitor figuras nem sempre celebradas no
Brasil. Ciente de que não só os jovens, mas os cansados corações brasileiros devem e podem
se inspirar em figuras como Miep.
Caso você saiba a quem este artigo se dedica, entendo que temos algo em comum: lemos O
Diário de Anne Frank. É por ele que chegamos à Miep, ao seu marido Jan Gies e aos demais
amigos que formaram uma rede protetora ao redor dos moradores do Anexo Secreto, atual
Museu Anne Frank. Todos esses homens e mulheres que arriscaram suas vidas por seus amigos
judeus, merecem homenagens. Por hoje, lhes falarei sobre Miep. Nela encontro uma palavra
muito usada atualmente, e por isso mesmo vulgarizada: resiliência. Caiu no gosto popular e
corre o risco de perder seu verdadeiro sentido. Após conhecer muitas histórias sobre os
sobreviventes do holocausto, descobri que para além das forças aliadas, havia civis ( e não
eram poucos) arriscando muito para minimizar os horrores imposto pelos nazistas em toda a
Europa. Miep é um desses exemplos e nos mostra que resiliência é algo como passar pelo olho
do furacão com dignidade, chegar vivo do outro lado, mesmo que aos pedaços e finalmente
agradecer por restarem partes identificáveis de si, reorganizando um mosaico de seu eu
anterior com o novo. Esse novo Eu é reconstruído, em geral, com a ajuda de pessoas que
chamamos de amigos. É possível que Miep tenha aprendido parte desta lição na mais tenra
infância.
A Primeira Guerra Mundial havia se encerrado oficialmente em novembro de 1918, como
consequência deixou um sem-número de famintos, além dos 17 milhões de vidas perdidas
entre militares e civis. Para minimizar os efeitos da subnutrição em crianças austríacas, um
programa de trabalhadores estrangeiros estabeleceu um convênio com famílias holandesas
que receberiam alguma criança a alimentariam e zelariam por ela, devolvendo-a à sua família
original após a recuperação física da criança. A Holanda havia se mantido neutra na Primeira
Grande Guerra, motivo pelo qual se via em condições de oferecer ajuda. Aos 11 anos, franzina
e enrolada em roupas que seus pais conseguiram com a doação de vizinhos, Miep embarca em
um trem para a Holanda, na companhia de outras crianças tão assustadas como ela. Em seu
pescoço um cartão pendurado informava um nome desconhecido, mas que a alimentaria e lhe
daria um lar para que pudesse regressar a Viena e viver junto de sua gente. Sessenta e sete
anos após esta noite Miep escreveria, com a ajuda da jornalista Alison Leslie Gold, uma
autobiografia: Recordando Anne Frank. Relataria o medo e a vulnerabilidade de uma criança
subnutrida, chegando a um país de língua estrangeira e sendo entregue a um casal que
poderia ter feito o que quisesse com ela, como de fato fizeram. Eles a alimentaram com
alimentos do campo, amor e proteção. Eles lhe ensinaram um outro idioma e a fizeram amar
aquela família tanto quanto Miep amava sua própria família. O resultado disso foi que Miep
voltou a Viena apenas para pedir aos seus pais biológicos que a deixassem viver com a família
que agora a tinha como uma filha. A Holanda era agora o país onde nascera o coração daquela
menina austríaca.

Anos depois Miep, adulta, encontra uma vaga de secretária em uma fábrica de temperos no
centro de Amsterdã. Seu chefe é um gentil alemão que viera de Frankfurt refugiando-se do
antissemitismo crescente. Este homem se chamava Otto Frank, era casado e tinha duas filhas
Margot e Anne. A vaga preenchida por Miep mudaria sua vida e seria uma colcha de retalhos
belos e dolorosos. A família de Otto Frank se tornaria amiga de todos os funcionários da
fábrica, bem como dos sócios de Otto. Eles se encontrariam nos fins de semana no
apartamento onde Otto vivia com a família, se divertiriam e Miep levaria consigo o seu
namorado Jan Gies. Esses primeiros anos seriam idílicos comparados aos que se seguiria em
países vizinhos, até irromperem nos anos de trevas que assolaram os Países-Baixos. Os judeus
fugiam de seus países como se fossem ratos, pois assim eram tratados pelo Partido Nazista.
Muitos encontraram alento em outros países, e com sorte conseguiam emigrar para os EUA ou
o Canadá, onde de fato estiveram a salvo. O país da Rainha Guilhermina parecia uma solução
segura. Mas quando Otto Frank entende que sua família não estava a salvo nem mesmo na
Holanda, encontra uma solução: escondr-se no sótão da Opekta, sua fábrica de temperos onde
Miep e a amiga Bep Voskuijl trabalhavam. É então que os esforços para manter a família
alimentada de forma segura e sigilosa, se tornam hercúleos. De julho de 1942 a agosto de
1944, Miep, Gies agora seu marido, Bep e os senhores Kleiman e Kugler, se desdobram para
manter não apenas a família Frank mas também, quatro outros indivíduos que se somam a
eles. Os detalhes desta história de contornos tão dolorosos, nós podemos acompanhar pelas
folhas do Diário de Anne Frank. E finalmente ele, o Diário, onde Miep é citada tão
carinhosamente por Anne repetidas vezes: foi Miep que reuniu as folhas do Diário espalhadas
pelo chão do esconderijo após a chegada dos oficiais nazista que capturaram todos os
moradores do Anexo. Ela reuniu as folhas e as guardou em uma gaveta do escritório. Em uma
entrevista ela relata que tinha muitas esperanças de entregá-las a Anne. Felizmente, no ano
seguinte, já sem esperanças de reencontrar seus amigos, Miep recebe Otto Frank em sua casa.
Ele fora o único sobrevivente, viera de Auschwitz e naquele momento ainda esperava
encontrar suas filhas. É com Miep e seu marido Jan que Otto passa a viver, pois sua antiga
casa e sua família ele nunca mais reencontraria. E é para ele que a amiga entrega as folhas do
diário de Anne Frank, onde mais tarde ela vem a conhecer, muito mais tarde, os sentimentos
de Anne por ela. Miep evitou ler o Diário porque não queria mais sofrer, não queria
reencontrar sua doce amiguinha Anne naquelas páginas. Tempos depois ela executa a tarefa.
Segunda, 8 de maio de 1944: “ Parece que Miep está sempre pensando em nós”, “ Nós nos
divertimos demais no domingo, Miep e Gies passaram a noite conosco”. É nítido para o leitor,
entre outras passagens, o quanto Anne se sentia ligada à Miep e também a Gies. Eles são o
modelo dos sonhos românticos de Anne. Não apenas por formarem um belo e jovem casal,
mas por se arriscarem por outras pessoas, por burlarem as leis nazistas e conseguirem
mantimentos, roupas, livros e artigos de higiene para os seus amigos refugiados. Além disso,
prestavam socorro para outras pessoas, em outros esconderijos.
Miep ajudou a fundar o Museu Anne Frank, em Amsterdã, local onde o Anexo Secreto nasceu.
Otto Frank viveu com ela, o marido e o filho até se casar novamente com Fritz e dedicar sua
vida à divulgação do Diário de Anne Frank. Respeitando o amigo, Miep decidiu escrever sobre
sua experiência com os moradores do Anexo Secreto somente após a morte de Otto Frank. Sua
vida é um exemplo e inspiração para nós, a qualquer tempo. E começa assim: Eu não sou uma
heroína.

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