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José Moraes, 100 anos - Guia das Artes
José Moraes, 100 anos
José Moraes, 100 anos
(Rio de Janeiro, 1921 – São Paulo, 2003)
inserido em 2020-10-07 17:37:57
Colunista: Enock Sacramento
Membro das Associações Paulista, Brasileira e Internacional de Críticos de Arte
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O centenário de nascimento de um artista sempre foi, e continua sendo, uma oportunidade única para a reavaliação de sua obra. Em 2021 será comemorado o centenário de nascimento de José Machado de Moraes, ou José Moraes, como é mais conhecido. Trata-se de um artista que está a reclamar maior atenção da intelligentsia brasileira, das instituições culturais, dos colecionadores de arte do país

 

José Moraes, que assinava suas obras como J. Moraes, nasceu no bairro de Encantado, no Rio de Janeiro. Com 17 anos, ingressou na Escola Nacional de Belas Artes, onde estudou pintura com Marques Júnior e Quirino Campofiorito. No ano seguinte, Quirino o apresentou a Cândido Portinari, de quem se tornou amigo e, mais adiante, assistente de estúdio. Como assistente de Portinari, José Moraes ajudou o mestre a pintar o mural do São Francisco, na Igreja da Pampulha, em Belo Horizonte, projetada por Oscar Niemeyer.

 

A trajetória artística de José Moraes se divide em dois períodos distintos. O primeiro corresponde ao carioca, que teve início em 1938, quando ele ingressou como aluno na ENBA e que durou 20 anos. E o segundo é o paulistano, que teve início em 1959, quando ele se mudou para São Paulo, e se estendeu até o fim de sua vida.

 

No período em que trabalhou no Rio de Janeiro, Moraes desempenhou significativo papel na consolidação da modernidade brasileira. Cumpre lembrar que, apesar da realização da Semana de Arte Moderna de 1922, em São Paulo, e de seus desdobramentos, os artistas modernos não foram aceitos nos salões oficiais de arte durante toda a década de 20. Com a Revolução de 30, Lúcio Costa foi nomeado diretor da ENBA e, como tal, abriu a 38ª Exposição Geral de Belas Artes para artistas brasileiros de todas as tendências. Os acadêmicos, temendo confronto com os modernos, recuaram. Assim, a Exposição geral de 1931, organizada por Anita Malfatti, Cândido Portinari, Celso Antônio e o próprio Lúcio Costa, que ficou conhecida como Salão Revolucionário, foi dominada pelos artistas modernos. Os acadêmicos, todavia, se reorganizaram e, lançando mão de manobras políticas, conseguiram o afastamento de Lucio Costa da direção da Escola e o restabelecimento do antigo domínio. De tal forma que, nos anos 30, os modernistas de primeira hora tiveram que construir suas carreiras à margem da Exposição Geral da ENBA.

 

As pressões de artistas comprometidos com uma arte mais atual, todavia, nunca deixaram de existir. Insere-se neste contexto o Núcleo Bernardelli, criado em 1931, no Rio de Janeiro, do qual participaram José Pancetti, Milton Dacosta, Joaquim Tenreiro e outros. Em São Paulo, a resistência moderna verificou-se sobretudo através de agremiações, grupos e salões tais como o Clube dos Artistas Modernos - CAM e a Sociedade Pró-Arte Moderna-SPAM, ambos criados em 1932, o Grupo Santa Helena (1934), a Família Artística Paulista (1937), o Salão de Maio (1937), o Salão do Sindicato dos Artistas Plásticos de São Paulo (1937).

 

Estes movimentos levaram a ENBA a criar, em 1940, uma Divisão Moderna da Exposição Geral, embora permanecessem nítidas as tendências conservadoras na instituição. Em 1938, quando ingressou na ENBA, José Moraes aproximou-se de alguns colegas contrários à orientação acadêmica dos programas educacionais da instituição. E promoveram algumas mostras fora da curva da política da Escola, entre elas uma que tinha como tema a obra de Van Gogh, outra de arte infantil e outra ainda referente à arte produzida pelo homem nos 25 séculos anteriores. 

 

Em 1942, pouco antes da abertura da exposição anual de alunos e recém-formados da ENBA, seu diretor Augusto Bracet, pintor acadêmico, proibiu a participação de uma escultura de Alfredo Ceschiatti, de um projeto de jardim de Francisco Bologna e Roberto Burle Marx e de um projeto arquitetônico de Maurício Roberto por não estarem de acordo com a estética oficialmente adotada pela ENBA. Um painel picasseano de José Moraes foi rasgado por alunos conservadores. Revoltados, Moraes, Ceschiatti, Bologna, Burle Marx e Maurício Roberto, acompanhados por José Pedrosa, Percy Deane, Eduardo Corona, Flávio de Aquino e outros transferiram então suas obras, carregando-as pelas ruas, para a sede da ABI-Associação Brasileira de Imprensa, no centro do Rio de Janeiro. E lá realizaram a primeira exposição dos Dissidentes, como sinal de protesto. Artistas plásticos de prestígio tais como Alberto da Veiga Guignard e Santa Rosa apoiaram o evento, que também recebeu os aplausos de escritores do porte de Manuel Bandeira, José Lins do Rego, Marques Rebelo e Murilo Mendes.

 

A mostra obteve grande repercussão pública. Como um dos líderes principais do movimento, talvez o mais destacado, José Moraes impressionou seu amigo e mestre Cândido Portinari que o convidou então a tornar-se seu assistente. No ano seguinte, o grupo realizou nova exposição no mesmo local, impulsionada pelos mesmos ideais. Este Grupo, que Mário Barata chamou de Alunos Rebeldes e Frederico Morais de Os Dissidentes, juntamente com o Grupo Guignard (1943), formado em torno do ateliê A Nova Flor do Abacate, apesar de suas curtas durações, foram decisivos para a expansão do ideário moderno no Brasil, que ganhou força após a Segunda Guerra Mundial e que se cristalizou com a criação da Bienal de São Paulo, em 1951.

 

Os rebeldes ou dissidentes se beneficiaram dos resultados da ação do grupo e conquistaram, nos anos seguintes, vitórias significativas na Divisão Moderna do Salão Nacional. Ceschiatti, conquistou em 1943, 1944 e 1945, respectivamente, a Medalha de Bronze, a Medalha de Prata e o Prêmio de Viagem ao Exterior. Percy Deane recebeu o Prêmio de Viagem ao País no Salão de 1943. José Pedrosa recebeu a Medalha de Ouro em 1945. E José Moraes foi premiado quatro vezes nos anos 40, conquistando o prêmio máximo do salão, o de Viagem ao Exterior, em 1949, que o levou a viver e trabalhar na França e na Itália em 1950 e 1951. Posteriormente voltou à Europa algumas vezes para temporadas mais curtas.

 

José Moraes participou ainda da histórica Exposição de Arte Moderna, realizada em 1944 em Belo Horizonte, durante a qual várias obras, entre elas pinturas suas e de Minton Dacosta, foram cortadas a estilete naquilo que ficou conhecido como “o batismo de sangue da arte moderna brasileira”. A saga dos Grupo Dissidentes e do Grupo Guignard foi objeto de uma exposição histórica, curada pelo crítico Frederico Moraes, na Galeria de Arte BANERJ, em 1986, no Rio de Janeiro. Ela também está documentada na dissertação de mestrado “José Moraes: a trajetória de um pintor na década de 1940”, apresentada em 1995 por Vladimir Machado à Universidade Federal do Rio de Janeiro, como requisito para obtenção do título de Mestre em História da Arte. Está chegando a hora de resgatar esta odisseia. Estes episódios são pouco conhecidos por grande parte da intelectualidade brasileira. E se constituem, todavia, em marcos importantes das lutas pela afirmação da modernidade no Brasil.

 

Moraes demonstrou, desde o início de sua carreira, grande interesse pelas obras de Portinari, Segall, de Guignard e de mais alguns artistas, mas sua grande influência foi mesmo a de Cézanne. Uma influência que durou a vida inteira, embora o artista tenha desenvolvido uma obra de maturidade no Rio, e, sobretudo em São Paulo, com características próprias, inconfundíveis. Em 1986, por ocasião das comemorações dos 80 anos de morte do pintor de Aix-en-Provence, Moraes produziu toda uma exposição em sua homenagem. E declarou, textualmente: “Para ele, a pintura estava fora da especulação pueril de ser moderno, de ser ou não atual.  Sempre me identifiquei com esse seu jeito de ser”. Moraes foi um pintor de ofício, que dominava com maestria o instrumento de seu trabalho. Mas nunca foi adepto do academicismo, tendência à qual uns poucos, equivocadamente, o associam., por ser figurativo.  Ele foi , na verdade,  um antiacadêmico histórico, de carteirinha, desde os bancos escolares.

 

Quando ganhou o Prêmio de Viagem ao País, no Salão Nacional, foi desfrutá-lo em Bagé, no Rio Grande do Sul, onde orientou, num ateliê, um grupo de jovens artistas, entre eles Glauco Rodrigues e Glênio Bianchetti. Segundo depoimento de Glauco, colhido por Vladimir Machado, “nosso grupo teve assim, o privilégio de poder começar o aprendizado de pintura no ateliê de José Moraes. Isto faz com que me sinta também um pouco aluno de Portinari, porque através de José Moraes, durante a sua estada em Bagé, ele nos transmitiu os ensinamentos do Mestre, desde o conhecimento da técnica da pintura propriamente dita até os detalhes de como lavar o pincel ou a disciplina de varrer o atelier, como na Florença do Renascimento”. Moraes gostava de ensinar “aos que queriam saber”. Em 1967 tornou-se professor na Faculdade de Artes Plásticas da FAAP, em São Paulo, onde permaneceu por muitos anos contribuindo para a formação de uma geração de artistas e ensinou Técnica de Pintura na Universidade Federal de Uberlândia, no Triângulo Mineiro (1972).

 

Para Carlos Scliar, “José Moraes é um desses artistas que nunca foi preocupado com o que está na ordem do dia, mas buscou e encontrou uma linguagem que hoje enriquece a pintura contemporânea brasileira”. Em matéria publicada na infelizmente extinta revista GAM, o conceituado crítico Antônio Bento, autor do primeiro livro sobre Ismael Nery, compartilha a mesma opinião a respeito de José Moraes: “As suas naturezas mortas e figuras fogem da temática brasileira e mantém em bom nível internacional. Não tem o artista a preocupação de seguir a moda para mostra-se à la page, repetindo o que estão fazendo os vanguardistas do mundo inteiro...  tem o mérito de permitir que o pintor aprofunde a sua arte, resolvendo os seus problemas formais, ao mesmo tempo em que, na figura, alcança a sua maior densidade expressiva, inclusive no emprego das cores”.

 

Morais nunca abandonou a pintura figurativa. Assim como outros verdadeiros artistas que não seguiram as tendências do momento, tal como Ismael Nery, Moraes produziu uma obra em consonância com suas ideias e convicções. Seu tema era o mundo que o cercava, a paisagem, a cidade, o campo, as pessoas, as coisas e estas afinidades eletivas foram se concentrando, com o passar do tempo, nas pessoas de sua família, nos objetos e utensílios de  sua casa e, sobretudo, de seus ateliês de São Paulo e do Embu, onde tudo era motivo para se fazer pintura: a vegetação, tubos de tinta, pincéis, ex-voto, garrafas, bules, vasos com flores, frutos, lamparinas, cadeiras. Nem pinturas já prontas, dispostas no cavalete ou espalhadas por seu ateliê, escaparam de sua escolha temática e foram incluídas como parte de novas pinturas. Na obra “Uberlândia, mon amour”, de 1982, ele vai mais longe, ao apresentar na mesma tela, à direita, a pintura da paisagem, representando o real, e, à esquerda, a pintura da pintura, num outro plano, ligeiramente deslocado, num intrigante jogo de metalinguagem.

 

Moraes tinha um profundo respeito pela natureza, atitude em que é seguido cada vez mais por uma parcela consciente de cidadãos do mundo. Ele percebia, contrariado,  a destruição da natureza pelo homem, “com uma fúria crescente, como num impulso de autodestruição”. Mas não se deixava abater: “apesar de tudo, nós, artistas, resistimos”.

 

Era cordial com os amigos, apaixonado por música, gostava de ensinar.  Tinha posições políticas firmes e convicção fortes sobre a arte que fazia. De tal forma que costumava ele próprio prefaciar seus catálogos, às vezes com textos poéticos. 

 

Para a exposição individual que realizou na Galeria Alberto Bonfiglioli, na rua Augusta,  São Paulo, em 1984, ele escreveu: ”esta é continuação da outra / de outras / o mesmo espaço / os mesmos mitos e paixões  / o ontem é hoje / o amanhã é ontem / pintando prossigo sedentário no tempo /envelheço / me renovo / permaneço.

 

A proximidade do centenário de nascimento de José Moraes já começa a manifestar seus primeiros resultados. Embora num nível abaixo do que faz jus, uma obra sua foi a mais disputada no último leilão da Blombô, realizado no dia 14 de setembro, em São Paulo. E começam os preparativos para a realização da exposição comemorativa de seu centenário, em 2021.

Portinari – SÃO FRANCISCO DE ASSIS - VÍRUS DA ARTE & CIA.

Mural de São Francisco (7,5 x 10,6 m) na Igreja da Pampulha, em BH, no qual Moraes trbahou como assistente de seu criador, Portinari. Fonte da imagem: Projeto Portinari

 

 

Enock Sacramento

qsp.projetosculturais@gmail.com

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