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Anne Brontë - Guia das Artes
Anne Brontë
Anne Brontë
inserido em 2022-07-15 18:06:08
Advogada e escritora. Carioca com coração mineiro.
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Este artigo tem como objetivo fazer jus à Anne Brontë. E como se faz justiça? É um conceito onde a subjetividade esbarra em um senso comum tão incomum nos tempos de hoje. Mesmo assim proponho-me a restaurar, ainda que submetida ao alcance destas linhas, o valor e a literatura do membro mais jovem da Família Brontë. Well, se para você leitor, a família não é tão famosa assim, sugiro que comece pelo título O Morro dos Ventos Uivantes. Ainda não? Então, que tal, Jane Eyre? Ambas as obras citadas, além de lidas por quase duzentos anos ao redor do mundo, foram consagradas nas telas de cinemas com incontáveis versões, e até mesmo na Broadway londrina. Se por acaso você venceu a primeira etapa, sabendo a qual família pertencia Anne, eu o parabenizo. Mesmo assim persiste a pergunta... E Anne Brontë, o que escreveu? Foi tão famosa quanto as outras duas irmãs, Emily e Charlotte, respectivamente autoras das duas obras acima mencionadas?

A resposta é: Anne escreveu Agnes Grey e A inquilina de Wildfell Hall. A lacuna que se sucede sempre que falo sobre as irmãs e ouço a inocuidade em relação a mais nova, me custa. E por isso usei o conceito de justiça para esta corajosa autora que morreu aos vinte e nove anos, vítima da tuberculose e não tão celebrada quanto às irmãs. E o que ocorre com suas obras é também um mistério para historiadores e amantes do legado brontëano, e talvez outra injustiça, em vista das decisões de sua irmã Charlotte.

Anne era a irmã mais jovem de seis filhos, e quando sua mãe falece tem pouco mais de um ano de vida. Motivo pelo qual, entende-se pelas correspondências trocadas entre ela e as irmãs, bem como por relatos de moradores da vila, que a ela recaía uma espécie de excesso de proteção. Em linhas gerais, para que possamos nos aprofundar no conceito de justiça, é preciso lhes dizer o cenário no qual Anne foi criada. Filha de um rigoroso e respeitado clérigo, Anne cresceu na vila de Haworth, a noroeste da Inglaterra. Aos cinco anos enfrenta a morte das duas irmãs mais velhas, Elizabeth e Maria que morrem aos nove e dez anos, em um intervalo de dois meses. As meninas, estudantes de um colégio interno, morrem em virtude de uma pneumonia tardiamente detectada pelo diretor da instituição. Esta experiência e os detalhes de como eram os internatos na Inglaterra, são o ponto de partida do romance de sua irmã Charlotte em Jane Eyre, sua Magnum opus. Patrick Brontë, um pai de família devotado e exemplar líder religioso, perde sua mulher e duas filhas em um intervalo de cinco anos. Isto faz com que retire suas outras filhas daquela instituição, Emily e Charlotte, e as eduque junto de Branwell no ambiente doméstico. É talvez por essas perdas, que a família escolha proteger Anne mais do que a todos os outros membros. E, quem sabe por isso, Anne seja retratada como a mais meiga dentro todos.

Charlotte, a mais velha, leciona em uma escola para moças e incentiva Emily a fazer o mesmo. Anne resta em casa, com o pai e tia, e seu irmão Patrick em quem o pai decide apostar todas as fichas. As três irmãs são muito unidas e, entre idas e vindas para casa enquanto trabalham como preceptoras, descobrem-se escritoras. Começam com um livro de poesias, que não vende mais do que dois exemplares. Para isso gastam quase todas as suas economias. Havia um medo constante entre elas, a morte do pai idoso custaria que devolvessem à paróquia a casa onde cresceram. Além disso, pelas leis britânicas, ficariam sob a custódia do irmão varão na ausência do pai e Branwell, até então, só havia colecionado derrotas pessoais e vícios.

As três apostam tudo na capacidade criativa e escrevem romances. Usam pseudônimos e aguardam, ansiosamente, por uma resposta positiva para a publicação de seus romances.  Charlotte é quem faz sucesso com seu aclamado Jane Eyre. Por conta do pseudônimo de sobrenome Bell, as outras duas também logram êxito na publicação de seus romances. Enfim, parece haver a chance de uma independência financeira. O tempo corre, e desde as publicações as questões familiares se complicam. Branwell adoece e falece de tuberculose. Emily, que cuidava dele, meses depois tem o mesmo fim. E Anne, segue para o sepulcro meses depois. Charlotte Brontë, a filha mais velha de Patrick Brontë, é quem subsiste a todos os irmãos. É quem cuida do pai, de uma carreira que começa a lhe dar alegrias de público e crítica, e também é quem pode decidir o futuro das obras das irmãs. A inquilina de Wildfell Hall, queridos leitores, é para nós o lugar da controvérsia. O segundo romance de Anne é avassalador para uma sociedade patriarcal dominante, indigesto para uma vila onde o clérigo é a figura central da moral e bons costumes, e um tanto dramático para os londrinos cosmopolitas obrigados a seguirem as convenções. Provavelmente o primeiro romance a falar de independência feminina e divórcio. A mulher amarrada pelos grilhões do matrimônio poderia, fugindo de todos, seguir com uma vida minimamente feliz? Não é preciso ser um gênio para supor como o segundo romance de Anne Brontë, agora morta, foi recepcionado. Restou à Charlotte a difícil missão de proteger o legado da irmã, mas também sua imagem e reputação. Como, uma moça que jamais tivera um relacionamento amoroso, poderia falar dos medos e das frustrações de um matrimônio mal fadado em pleno século XIX? Anne Brontë ousou. Contudo, a Charlotte restou a difícil escolha de proibir a reedição do romance.

A pergunta que resta é: teria Charlotte rompido a evolução da obra, deixando apenas que Agnes Grey falasse pela voz da irmã? A inquilina era também, uma ameaça para o sucesso de O Morro dos Ventos Uivantes, de Emily,  e para os outros trabalhos de Charlotte?  

Entendo que Anne é a menos frágil. Talvez por ter recebido mais atenção e mais amor. Talvez por relembrar a perda das irmãs e da mãe através de uma fresta e não com a porta escancarada da saudade, como olhavam Branwell Charlotte e Emily a perda de seus entes. Fato é que, Anne Brontë escreveu o primeiro romance feminista da Inglaterra. Ao menos o que mais se assemelha aos nossos tempos. É um motivo forte para relegá-la ao esquecimento, não? O público aceitaria uma Agnes que questiona o amor de homem da seguinte maneira: “E por que ele iria aceitar minhas capacidades morais e intelectuais, que importância terá para ele o que eu penso ou sinto?”, afinal já estavam acostumados com as mocinhas de Jane Austen. Contudo, não permitiriam uma personagem misteriosa que chega a uma antiga mansão com seu filho pequeno e não presta satisfações de sua vida aos vizinhos. A inquilina fazia seu interlocutor pensar, em tempos onde só os homens estavam autorizados a isso: “ Se você cultivar uma muda de carvalho em uma estufa, guardando-a com cautela noite e dia, e protegendo-a de qualquer brisa, não pode esperar que ela se torne uma árvore imponente como aquela que cresceu na montanha (...)”  Anne Brontë falava de si. Tinha sede de conhecer e viver outros mundos, outras paisagens. Tinha sede do mar e é próxima a ele que falece, longe de casa, na esperança de se curar. Antevendo sua morte, escreve para Charlotte: seja forte.

 

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