Monica Tinoco para exposição Compensado, 2015
...quem somos nós, quem é cada um de nós senão uma combinatória de experiências, de informações, de leituras, de imaginações? Cada vida é uma enciclopédia, uma biblioteca, um inventário de objetos, uma amostragem de estilos, onde tudo pode ser continuamente remexido e reordenado de todas as maneiras possíveis.
CALVINO, Italo. Seis propostas para o proximo milênio. São Paulo, Companhia das Letras, 1990, pg.138.
O escritor Italo Calvino, em uma série de conferências as quais procuravam pensar quais as virtudes a humanidade deveria cultivar durante o desenvolvimento do século XXI, dedica um capítulo exclusivo à questão da multiplicidade. O autor analisa, através de comentários baseados em textos literários, o anseio contemporâneo em saber tudo, a sedução e a desmesura do desafio de conter a totalidade do conhecimento do mundo, encerrando-o num círculo, cuja ambição seria englobar todo o possível, ouvir todas as vozes, acomodar todos os sujeitos e abraçar todos os olhares.
Calvino observa que a tentativa de compreender o mundo na multiplicidade de seus códigos, torna a tarefa inconclusa, por força de seu próprio sistema vital. O mundo vai dilatando-se ou adensando-se em seu interior, no conjunto das teias de visões pluralistas e multifacetadas que vão se multiplicando, com potencial infinito.
A série Compensado de Cassio Leitão parece conter a virtude da multiplicidade. Cada pintura individualmente possui um pensamento pictórico particular, próprio e interessante. Porém, o artista não se atém ao fato, logo realiza outra pintura, já que um pensamento o levou à outro; e rapidamente ele tece uma teia de soluções pictóricas em composições de conotação e efeito variados.
Não há narrativa linear, os acontecimentos da pintura se dão em fluxos, ora expansivos, ora contrativos; por vezes contraditórios ou acumulativos. Um aspecto levantado aqui, uma solução pictórica, uma forma, uma côr, é repetido alí, de outra maneira, visto de outro ângulo, pensado em outra cor. Por força de sua própria vocação constitucional, a tarefa da pintura do Compensado é inconclusa e potencialmente infinita.
Fica evidente nas pinturas de Cassio Leitão a rapidez de execução, a pintura de qualidade “breve”, a qual permite descrever estruturas pictóricas inventivas e expressivas com densidade individual mas que ganham corpo pela concentração modular e acumulativa de sua potencialidade infinita. No seu conjunto, a série Compensado é uma “longa” pintura, composta de pinturas “breves”.
Juliana Monachesi para exposição Natura x Cultura, 2014
Motivo: Desastres: A arte recente de Cássio Leitão
Os desastres naturais, na série recente de pinturas de Cássio Leitão, não são um tema propriamente dito. Funcionam mais como motivo, como subterfúgio para pintar essas formas um tanto disformes e essas cores enevoadas, senão soturnas de tudo. O artista parte de fotografias de catástrofes para compor as telas, mas elege predominantemente ângulos fechados, que fazem o olhar patinar pela superfície da pintura, sem saber qual a escala dos destroços. Contribui para a sensação “deslizante” o fato de que o artista carrega nas tintas e não se sente, em momento algum, preso ao assunto, apegado a verossimilhanças.
A escolha deste assunto, então, parece sugerir um desejo de abstração. Afinal, poucas formas são mais indefinidas do que a de escombros de construções arrastados pela força da natureza e depositadas sem hierarquia nenhuma uns em cima dos outros a quilômetros do local original onde se erguiam antes do desastre. Reforça-o (o suposto desejo de abstração) a indefinição entre pincelada e desenho nas pinturas da série. Não há vestígios de desenho anterior na tela, mas as formas construídas apenas com a cor são, eventualmente, conectadas por uma pincelada unificante, que parece contorno e remete a desenho.
Finalmente, vale notar nesta série, a paleta tipicamente paulistana de algumas pinturas, com tons rebaixados e ausência de preto. Além, claro, da opção do artista por, em certas telas, deixar visível um fragmento de uma obra anterior que estava por baixo da pintura final. Segundo o próprio Cássio, não lhe interessa partir do zero quando vai iniciar uma tela.
O procedimento aponta, a meu ver, uma outra filiação relevante: a de artistas apropriacionistas e colagistas que recusam o espaço supostamente neutro do cubo branco, assim como da tela branca. Um bom começo para uma trajetória longa que, agora, deslanchou!
Cassio Leitão (São Paulo, 1962)
Formado pela FAAP em 1985 se divide entre as artes visuais, gráficas e fotografia,
sendo atualmente a pintura sua principal atividade.
Vive e trabalha em São Paulo e Oranjestad (Aruba).