Renina Katz: cem anos de arte, coragem e poesia gravada
Do preto e branco social ao lirismo das transparências, Renina talhou a história da gravura brasileira como quem desenha a própria liberdade.
Uma vida marcada pela resistência
Renina Katz Pedreira nasceu em 1925, no Rio de Janeiro, filha de judeus poloneses que buscaram no Brasil um refúgio após a Primeira Guerra Mundial. Sua infância foi marcada pelas memórias de deslocamento e reconstrução, elementos que moldariam, mais tarde, o olhar sensível e atento às questões sociais brasileiras.
A partir dos anos 1940, Renina se envolve profundamente com a arte, primeiro com a pintura de retratos e paisagens de inspiração expressionista. Mas em 1946, tudo muda: conhece a xilogravura pelas mãos do artista austríaco Axl von Leskoschek e descobre naquele gesto — firme, direto, incisivo — a linguagem que melhor traduziria seu momento político e humano.
“Eu estava numa fase de muito engajamento político, de denúncia…” — Renina Katz
Xilogravura e realismo social
Entre 1946 e 1956, Renina constrói uma produção poderosíssima em xilogravura, retratando retirantes, trabalhadores urbanos, camponeses sem terra e favelas. Sua obra nesse período impressiona pelo rigor formal e pela contundência emocional. O álbum Favela (1956) se tornou um marco da gravura de denúncia no Brasil.
Críticos, inclusive, a compararam a nomes como Käthe Kollwitz, pela força gráfica e empatia social traduzida nos traços em preto e branco.
A educadora
Em 1951, Renina muda-se para São Paulo e logo começa a lecionar gravura e desenho no MASP e na FAAP, ambientes pulsantes do modernismo paulista. Alguns anos depois, em 1965, ingressa como professora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP (FAU-USP), onde permaneceria por 28 anos, formando gerações de artistas e arquitetos.
Sua didática, rigorosa e ao mesmo tempo afetuosa, ficou marcada na memória de muitos alunos, como o artista Fábio Miguez, que relembra:
“Ela percebia quando o trabalho não dava certo, mas enxergava a intenção de avançar. Esse aprendizado foi maior do que qualquer nota.”
A guinada poética
A partir da metade dos anos 1950, Renina começa a se afastar do realismo social e do engajamento militante explícito. Ela mesma explica:
“Minha gravura estava muito comprometida com recados. E eu não era mais uma jovem militante…”
Assim, emerge uma produção mais lírica, em que as paisagens urbanas e as memórias se dissolvem em transparências e camadas de cor. A litogravura passa a ser seu suporte preferido a partir dos anos 1970.
Em 1981, Renina apresenta a série Lugares, inspirada no poema “Paisagem: Como Se Faz”, de Carlos Drummond de Andrade. Ali, a artista reinventa o modo de ver a cidade, transformando-a em paisagem interna, fluida, carregada de memórias.
A mestra da impressão
Nos anos 1980 e 1990, Renina aprofunda ainda mais seu estudo da litografia, desenvolvendo técnicas de impressão múltipla com várias matrizes sobrepostas para criar superfícies translúcidas e delicadas. Obras como Cosmos 2 (1992) e Limite 2 (1993) traduzem essa fase de síntese entre rigor técnico e liberdade poética.
O crítico Roberto Pontual chegou a dizer que, nesse período, suas gravuras “aproximam-se da atmosfera musical e transparente de Fayga Ostrower”.
Aquarelas da maturidade
Problemas de saúde, a partir dos anos 2000, afastaram Renina das prensas, mas não da arte. Ela passou a dedicar-se mais à aquarela, mantendo viva sua pulsão criativa até seus últimos anos.
“Eu nunca parei de trabalhar.” — Renina Katz
Redes de afeto e liberdade
Renina não foi apenas uma artista e professora; foi também uma mulher profundamente conectada a outras mulheres de sua época. O escritor Marcelo Rubens Paiva relembra que sua mãe, Eunice Paiva, tinha em Renina e na escritora Lygia Fagundes Telles companheiras de resistência e afeto, em madrugadas de conversa, uísque e sonhos de liberdade, durante e depois da ditadura.
Um legado centenário
Renina faleceu em janeiro de 2025, aos 99 anos, em Niterói, no ano em que completaria 100. O crítico e curador Agnaldo Farias resumiu sua importância de forma definitiva:
“Ela foi coerente, bela e importante. Sorte da FAU em tê-la tido em sua história.”
Sua trajetória — da xilogravura de denúncia às transparências da litografia, passando pela aquarela — permanece como matriz aberta para artistas do presente e do futuro.
“Gravar é resistir.”
Linha do tempo resumida
1925 — Nasce no Rio de Janeiro
1946 — Primeiros estudos em xilogravura
1956 — Publica o álbum Favela
1965 — Inicia docência na FAU-USP
1970 — Primeiras litogravuras
1981 — Série Lugares
1992 — Obra Cosmos 2
2004 — Última grande exposição individual
2025 — Centenário de nascimento
Renina presente
Que sua arte continue a nos lembrar da coragem de criar, do poder da gravura e da delicadeza de olhar o mundo com empatia e força.