LUZES E TRAMAS: MODERNISMO, TRADIÇÃO E MODERNIDADE NOS LEILÕES DE PINTURA E FOTOGRAFIA
Na semana de 29 de julho de 2025, o iArremate abre dois leilões que, embora distintos em suporte e curadoria, dialogam entre si. O leilão Bolsa de Arte – Moderno e contemporâneo apresenta pinturas de grandes mestres brasileiros, enquanto o 120º Leilão Blombô = Fotografia reúne imagens raras de integrantes do Foto Cine Clube Bandeirante. O fio condutor que une essas obras é a busca por uma linguagem moderna enraizada no cotidiano, na paisagem e na cultura nacional.
PORTINARI: A ALMA DO BRASIL EM DUAS TELAS
Candido Portinari (Brodowski-SP, 1903 – Rio de Janeiro, 1962) foi um dos artistas que mais projetou a arte brasileira no exterior. Desde jovem desenhou e pintou inspirado pela vida rural; suas obras expressam “a alma do Brasil”, com ênfase nos dilemas sociais, paisagens e no cotidiano do povo. Após estudar na Escola Nacional de Belas Artes e passar uma temporada em Paris, Portinari consolidou um estilo que mesclava influências europeias ao compromisso com a realidade brasileira.
- Mulher com galo (1941). Nesta tela monumental (100 × 80 cm), uma camponesa anônima segura um galo. A modelagem volumétrica, as cores terrosas e a expressão melancólica sintetizam o olhar humanista de Portinari, que revela a dignidade do trabalhador rural. A presença do animal remete à simbologia de fertilidade e ao ciclo da vida, ligando a figura feminina à natureza e aos rituais da lida no campo.
- A Árvore da Vida (1959). Datada de uma fase madura, esta obra (60 × 73 cm) traz uma árvore estilizada, cujos galhos se expandem em arabescos, conectando o céu e a terra. A paleta vibrante e o uso de formas simplificadas evocam um universo lídico, no qual o ciclo de renovação e a relação entre homem e natureza se tornam centrais.
IBERÊ CAMARGO E OS CARRETÉIS DA MEMÓRIA
A vida e a obra de Iberê Camargo (Restinga Seca‑RS, 1914 – Porto Alegre‑RS, 1994) foram marcadas pela inquietação pictórica. Pintor, gravador e professor, Camargo estudou com mestres como Frederico Loebe e Salvador Parlagreco e, em 1942, foi para o Rio de Janeiro, ingressando na Escola Nacional de Belas Artes. Insatisfeito com o ensino acadêmico, buscou orientação com Guignard e, em 1947, estudou com Giorgio de Chirico em Roma e André Lhote em Parisescritoriodearte.com. Ao retornar ao Brasil, fundou cursos de gravura e dedicou-se a uma pintura gestual, dramática, que investiga a condição humana.
- Figura Carretéis III (1973). Na série dos carretéis, formas circulares remetem a rolos de linha e carretéis de costura, objetos que o artista conheceu na juventude. Em Figura Carretéis III (93 × 132 cm), esses elementos dialogam com a figura humana de maneira simbólica: a figura parece enredada pelos carretéis, sugerindo uma reflexão sobre o tempo, o trabalho manual e a circularidade da vida.
DI CAVALCANTI: CRÔNICAS URBANAS E MODERNISMO
Emiliano Di Cavalcanti (Rio de Janeiro‑RJ, 1897 – 1976) foi pintor, ilustrador e um dos protagonistas da Semana de Arte Moderna de 1922. Cresceu cercado por intelectuais como Joaquim Nabuco e Machado de Assis, e estudou pintura desde cedoescritoriodearte.com. Sua carreira incluiu experiências como caricaturista e viagens pela Europa, onde conheceu artistas como Picasso, Braque e Matisse, absorvendo influências do cubismo e do fauvismo Ao retornar ao Brasil, Di Cavalcanti reinterpreta essas vanguardas com elementos populares e sensuais.
- Ambulante (1950). O quadro retrata um vendedor de rua, figura comum nas paisagens de Rio de Janeiro dos anos 1950. A composição recorre a linhas fluidas e cores quentes, criando um clima de calor e movimento. A obra sintetiza o olhar de Di Cavalcanti sobre a vida urbana e o encanto das feiras e mercados, aproximando-se de seu interesse pela cultura popular e pelo ritmo do samba.
JAIDER ESBELL: COSMOLOGIA INDÍGENA E CONTEMPORANEIDADE
O artista, escritor e produtor cultural Jaider Esbell (1979) nasceu em Normandia, na Terra Indígena Raposa Serra do Sol. Membro da etnia Makuxi, Esbell foi eletricista de linha de transmissão antes de dedicar-se integralmente à arte. Sua biografia é marcada por trajetória autodidata e envolvimento em projetos comunitários; ele passou a pintar e escrever a partir de 2010, participando de exposições no Brasil e no exterior, fundando um ateliê em Roraima e articulando o Encontro de Todos os Povos. A obra de Esbell incorpora mitos, lendas e o universo cosmológico indígena, usando cores vibrantes e iconografia ancestral.
- Acrílica sobre tela (2019). A obra apresentada no leilão (60 × 60 cm) traduz em pinceladas pulsantes a relação entre a terra e o cosmo. O uso de formas orgânicas e cores intensas remete às narrativas de Makunaima e às lendas do povo Makuxi, convidando o observador a mergulhar em uma cosmologia circular que coloca o ser humano como parte de uma teia maior.
MODERNISMO EM MOVIMENTO: A FOTOGRAFIA DO FOTO CINE CLUBE BANDEIRANTE
O segundo leilão da semana, Blombô - Fotografia, apresenta imagens raras de fotógrafos ligados ao Foto Cine Clube Bandeirante (FCCB), grupo fundado em 1939 em São Paulo. O FCCB reuniu entusiastas que buscavam elevar a fotografia ao estatuto de arte, promovendo cursos, concursos e experimentações. Entre eles estavam José Yalenti, Barbara Mors e Marcel Giró.
O estudo de Dr. Danielle Stewart sobre o fotógrafo José Yalenti descreve como a fotografia brasileira modernista foi moldada pelo diálogo com a arquitetura e com o crescimento urbano: em 1939, Yalenti e colegas fundaram o FCCB, que codificou a linguagem da fotografia moderna, explorando composições geométricas, contrastes fortes e perspectivas vertiginosas. O grupo adaptou tendências internacionais — de movimentos como o f/64, a Nova Objetividade e a Bauhaus — para a realidade brasileira.
- José Yalenti - Pânico 2 (c. 1950). Integrante do FCCB e engenheiro de formação, Yalenti explorava a abstração fotográfica. Em Pânico 2, linhas diagonais atravessam manchas de luz e sombra, criando uma sensação de vertigem. A obra faz eco às palavras de Yalenti sobre a fotografia como “linguagem das linhas” e reflete a influência do modernismo arquitetônico de Oscar Niemeyer
- Barbara Mors – Inverno / Zea Mays I. Uma das raras mulheres do FCCB, Barbara Mors dedicou-se à fotografia de natureza e objetos. Inverno capta a austeridade do frio com equilíbrio entre luz e textura, enquanto Zea Mays I (1954) transforma uma espiga de milho em estudo formal de curvas e repetições. Suas imagens revelam um olhar sensível e sofisticado, capaz de transformar elementos do cotidiano em abstrações poéticas.
- José Yalenti – Folhagem (déc. 1960). A aproximação com folhas e sombras cria um jogo gráfico de cheios e vazios, evidenciando como o fotógrafo aproximava a fotografia da pintura abstrata.
- Marcel Giró – Folhas de prata (1979). Catalão radicado no Brasil, Giró foi membro ativo do FCCB e abriu estúdio com sua esposa Palmira Puig. Em Folhas de prata, ele captura folhas iluminadas de forma a criar forte contraste entre claro e escuro. A composição destaca o ritmo da natureza e demonstra a influência das vanguardas europeias combinada à luz tropical brasileira.
UM CONCEITO UNIFICADOR: O COTIDIANO TRANSFORMADO EM ARTE
Apesar de pertencerem a suportes diferentes, as obras de pintura e fotografia apresentadas nos leilões desta semana compartilham uma linha conceitual forte: a transformação do cotidiano em arte moderna. Portinari eterniza camponeses e cenas rurais para revelar a dignidade do povo; Iberê Camargo investiga o tempo e a memória a partir de objetos banais; Di Cavalcanti registra a vida urbana e os personagens anônimos; Jaider Esbell ressignifica mitos indígenas para o presente. De modo análogo, Yalenti, Mors e Giró transmutam folhas, sombras e estruturas em fotografias abstratas, relacionando-se com a arquitetura e com a paisagem contemporânea.
Essa convergência mostra que, seja pela pincelada ou pela lente, os artistas transformam linhas, tramas e texturas em expressões de identidade e modernidade.