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ENTRE LINHAS E RITUAIS - Guia das Artes
ENTRE LINHAS E RITUAIS
ENTRE LINHAS E RITUAIS
inserido em 2025-08-04 15:44:11
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ENTRE LINHAS E RITUAIS: GEOMETRIAS E NARRATIVAS NOS LEILÕES DE AGOSTO

O iArremate recebe na primeira semana de agosto três leilões que, embora organizados por casas distintas — Selum Leilões, Cukier Arte e Galeria de Arte Firenze — dialogam entre si por meio de um tema comum: a tensão entre a geometria moderna e o impulso sensível, seja ele espiritual, doméstico ou diretamente figurativo. As obras apresentadas atravessam décadas e técnicas, do neoconcretismo de Amílcar de Castro à ousadia óptica de Carlos Cruz‑Diez, passando por desenhos de Joaquim Tenreiro, abstrações gestuais de Wega Nery e experimentações materiais de Marcos Coelho Benjamim. Ao final, a poética íntima de Wanda Pimentel e a espiritualidade de Carybé completam o percurso.

 

GEOMETRIAS EM EXPANSÃO

AMÍLCAR DE CASTRO – RIGOR E POESIA NA FORMA

Amílcar de Castro, escultor e gravador mineiro, é figura central do neoconcretismo. Ainda jovem mudou‑se para Belo Horizonte, onde cursou Direito e frequentou aulas com Guignard e Franz Weissmann. Em 1959 assinou o Manifesto Neoconcreto e, a partir de então, desenvolveu um vocabulário reduzido: cortes e dobras em chapas metálicas que criavam esculturas quase minimalistas.

No lote 116 da Selum Leilões, o artista surge com uma litografia sem título. Duas estruturas retangulares negras, posicionadas de forma sobreposta, exploram o contraste entre vazio e preenchimento. A gravura conserva a economia de meios típica de sua obra e lembra os protótipos das esculturas de chapas recortadas, mas aqui a textura do papel suaviza a rigidez geométrica.

Já no lote 100 da Galeria de Arte Firenze, uma grande pintura sobre tela (1989) expande o vocabulário tridimensional para o plano pictórico. Três planos ortogonais delineados em preto abrigam campos de branco, cinza e um vermelho intenso. A obra joga com profundidade ilusória: a moldura pinta o espaço como se fosse escultura, transformando a tela em objeto.

 

MILTON MOTA – VIBRAÇÃO ÓPTICA

Milton Mota nasceu em Santo André (SP) e formou‑se em tecnologia e desenho industrial. Seu percurso passa por pintura, escultura e fotografia, sempre com forte influência concretista e experimental. Em “Branco e preto” (lote 28, Selum Leilões), ele apresenta uma composição em acrílica onde linhas verticais regulares descem como chuva sobre um semicírculo sombreado. O contraste entre as barras finas e o arco cria um efeito vibrante, em que a transição de branco para preto engana o olho e remete aos estudos ópticos de Bridget Riley e Cruz‑Diez. A obra demonstra a busca do artista por ilusão de movimento sem abrir mão da simplicidade gráfica.

 

JOAQUIM TENREIRO – DESENHO ENTRE DESIGN E POESIA

Mais conhecido como pioneiro do móvel moderno brasileiro, Joaquim Tenreiro nasceu em Portugal e emigrou para o Brasil, onde trabalhou como marceneiro, estudou desenho e participou do Núcleo Bernardelli. Nos anos 1940 e 1950 consagrou‑se como designer com peças em madeira fina e linhas elegantes, mas a produção bidimensional sempre acompanhou sua pesquisa. Em “Bicicletas” (lote 63, Cukier Arte), nanquim, aquarela e guache constroem uma fileira de aros intercalados por triângulos azuis. A repetição sugere perspectiva e movimento, como se os círculos estivessem prontos para girar, e ecoa seu entendimento da geometria aplicada ao mobiliário. É uma ponte entre design e arte.

 

CARLOS CRUZ‑DIEZ – A COR COMO FENÔMENO

O venezuelano Carlos Cruz‑Diez, um dos principais nomes da arte cinética latino‑americana, dedicou sua carreira a estudar a cor como evento autônomo; suas séries “Physichromies” e “Chromointerferences” exploram a interação cromática e o efeito de movimento. No lote 55 da Cukier Arte encontramos a gravura “Induction du Jaune Rioja 40‑45” (2014), onde faixas verticais azuis e brancas cercam retângulos cinza. À primeira vista, a paleta é limitada, mas à medida que o espectador se movimenta as faixas parecem vibrar e as áreas cinzas assumem tonalidades. O fenômeno não está na tinta, mas nos olhos: Cruz‑Diez nos lembra que a percepção é dinâmica.

 

ABSTRAÇÕES SENSÍVEIS E MATÉRICAS

WEGA NERY – PAISAGENS IMAGINÁRIAS

Wega Nery, pintora e poeta nascida em Corumbá, estudou na Escola de Belas Artes de São Paulo e, sob orientação de Samson Flexor, iniciou‑se na abstração geométrica. A partir dos anos 1960 desenvolveu as chamadas “paisagens imaginárias”, nas quais o gesto livre encontra reminiscências de objetos e paisagens. “Palpitação matutina” (lote 53, Cukier Arte) é uma explosão de pinceladas diagonais em azuis, ocres e amarelos. As superfícies fragmentadas sugerem um nascer do sol atravessando montanhas abstratas; linhas brancas riscam a tela como se tentassem ordenar o caos cromático. A obra capta a tensão entre impulso e estrutura, característica do trabalho da artista.

 

MARCOS COELHO BENJAMIM – RODA COMO UNIVERSO

Marcos Coelho Benjamim é um artista mineiro que se desdobra em escultor, pintor, cartunista e cenógrafo. Sua obra investiga a forma orgânica e a matéria, utilizando reciclados e pedras locais. No lote 95 da Galeria de Arte Firenze, “Roda” (2006) apresenta um disco de 162 cm de diâmetro coberto por centenas de grampos metálicos sobre lona reciclada. De longe, a superfície lembra um céu estrelado; de perto, revela uma topografia tátil. A roda remete ao ciclo, ao movimento e à própria reinvenção de materiais de descarte, exaltando a estética da reutilização.

 

INTIMIDADE E ESPIRITUALIDADE

WANDA PIMENTEL – A CASA REINVENTADA

Discípula de Ivan Serpa no MAM do Rio de Janeiro, Wanda Pimentel construiu uma obra marcada por rigor formal e crítica social. Seus desenhos e pinturas investigam os limites entre o espaço público e o privado; a artista participou de importantes exposições a partir dos anos 1960r. No lote 110 da Galeria de Arte Firenze, um conjunto de quatro desenhos da série Invólucro e Mão de Bia (2004/05) apresenta planos escuros atravessados por linhas prateadas que delineiam objetos domésticos – uma mão, a indicação de um sofá, a sombra de uma janela. A simplicidade formal contrasta com a densidade simbólica: são interiores silenciosos nos quais a presença humana aparece apenas como vestígio ou gesto.

 

CARYBÉ – FÉ E RESISTÊNCIA

Héctor Julio Páride Bernabó, o Carybé, nasceu em Lanús, Argentina, e mudou‑se ainda jovem para o Brasil. Artista multifacetado — pintor, gravador, escultor, ilustrador e jornalista —, produziu milhares de obras que refletem a cultura popular e afro‑brasileira. Seu apelido vem do tempo em que participava do grupo de escoteiros. No lote 90 da Galeria de Arte Firenze, a gouache “São Sebastião” (1963) retrata o mártir cristão preso a uma árvore, atravessado por flechas. Ao fundo, um tronco quase transparente sugere um orixá; a figura, embora sofrida, permanece ereta e olhar sereno. A obra dialoga tanto com a tradição católica quanto com a religiosidade afro‑brasileira presente na trajetória do artista — ele foi Obá de Xangô do terreiro Ilê Axé Opô Afonjá.

 

ARTISTAS EM DIÁLOGO

Os trabalhos selecionados nestes leilões destacam como a arte brasileira e latino‑americana soube conciliar a racionalidade moderna com a sensibilidade popular e espiritual. Amílcar de Castro e Milton Mota exploram a geometria como uma linguagem quase musical; Tenreiro e Cruz‑Diez investigam o ritmo e a percepção; Wega Nery e Marcos Coelho Benjamim partem da matéria para construir universos orgânicos; Wanda Pimentel convida o observador a adentrar espaços íntimos; e Carybé lembra que a figura humana e a fé ainda são fontes inesgotáveis de narrativa.

Essa diversidade revela que a arte não se resume à oposição entre “abstrato” e “figurado”. Em vez disso, ela se nutre de diálogos: entre o plano e o volume, o doméstico e o sagrado, o design e a pintura. Participar desses leilões é testemunhar como os artistas transformam linhas e objetos em rituais visuais – entre linhas e rituais, o que se celebra é a potência da criação.

 

SELUM LEILÕES – LEILÃO DE ARTE (04/08, 20H30)

CUKIER ARTE – ARTE: PINTURAS, GRAVURAS, ESCULTURAS E DESENHOS (05/08, 20H)

GALERIA DE ARTE FIRENZE – LEILÃO DE AGOSTO (05/08, 20H)

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