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Noventa vezes Gertrude - Guia das Artes
Noventa vezes Gertrude
Noventa vezes Gertrude
inserido em 2023-05-02 18:26:42
Advogada e escritora. Carioca com coração mineiro.
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As mulheres, seus valores, seu papel social, nunca estiveram tão em voga quanto hoje. Nem mesmo quando queimavam sutiãs nas praças, quando o anticoncepcional finalmente surgiu como uma carta de alforria para quem pretendia planejar uma gravidez, ou para quem jamais desejou ser chamada de mamãe. Desde a estigmatizada Eva à desejada Afrodite, nós mulheres jamais experimentamos ao menos a distorcida ideia de empoderamento (para usar do glossário da moda), como na última década. Sobre os contornos e efeitos desta onda a longo prazo, deixo para os sociólogos uma mais profunda análise. Importo-me com figuras cujo objetivo era provar que o cérebro não possui um órgão reprodutor.

 Gertrude Stein pertenceu a um tempo em que as mulheres engajadas usavam de uma única estratégia; punham a mão na massa. Escrevia ensaios, poesias, romances, e apostava como uma águia nos futuros nomes da arte moderna. Aliás, o modernismo deve muito a ela. Dona de faro incomum, Gertrude e seu irmão Leo iniciaram uma pequena coleção de arte assim que chegaram a Paris, em 1904. Americana, nascida na Pensilvania em uma família judia, relativamente abastada, Gertrude cursou medicina na Universidade Johns Hopkins, em Baltimore. Mesmo após se aprofundar na Psicologia (matéria presente na maioria de seus trabalhos), Gertrude abandona a medicina e após a morte dos pais, se erradica em Paris. Nos primeiros anos vive com o irmão, Leo, que também pintava quadros além de financiar a carreira de alguns artistas. Tempos depois decide viver só, momento em que os irmãos são obrigados a dividir um considerável acervo de arte. O motivo da separação versou, aparentemente, sobre o fato de Gertrude sentir-se diminuída pelo irmão artisticamente. Mesmo escrevendo dia e noite, para Leo o que a irmã fazia tinha pouca importância.

 Três anos após sua chegada a Paris, Gertrude conhece Alice Toklas e em pouco tempo estão vivendo sob o mesmo teto. Toklas é, além de editora e secretária particular de Gertrude, sua companheira para as próximas quatro décadas. O casal, conhecido por patrocinar os melhores saraus da Paris dos anos 20, ocupava um lugar de destaque nas conversas em meio às fumaças de charutos e cigarros dos jovens artistas. Ali, muitos deles acreditavam projetar suas carreiras, como tal, Pablo Picasso. O espanhol tinha pouco mais de vinte e quatro anos quando pintou um retrato da amiga e mecenas. Segundo Gertrude, Picasso a esboçou nada menos que noventa vezes. Atualmente a tela está exposta no Metropolitan, em Nova Iorque. A amizade dos dois era como uma parceria onde a perspicácia de um aflorava a genialidade do outro. Aliás, a egocêntrica Gertrude lista o nome dos gênios dos únicos que mereciam tal título: Ela mesma, Picasso e o matemático Alfred Whitehead.

 Se a relação com o amigo e confidente Pablo Picasso fluiu por anos, com o futuro romancista Ernest Hemingway, pupilo de Gertrude, a coisa se tornaria mais complicada. A combinação de dois superegos foi bombástica. Hemingway era assíduo frequentador do apartamento de Gertrude e Toklas. Acompanhado de sua primeira esposa, Hadley, longe de ser o excêntrico autor de Por Quem os Sinos Dobram, Hemingway almejava desesperadamente um lugar ao sol. Na época, Fitzgerald e James Joyce já sentiam o Sol batendo em seus corpos e eram também figuras fáceis no sofá de Gertrude. Parece que após beber daquela taça, uma taça aparentemente generosa, Hemingway esqueceu-se de sua mentora e sequer a reconhecia como tal. Nas palavras da própria Hadley, tempos após aqueles anos na Cidade Luz, Hemingway foi ingrato e pouco lisonjeiro com Gertrude. Mas ele não foi o único. A mecenas tinha fala afiada, motivo pelo qual seu amigo Picasso rompe laços com ela por conta da morte do amigo Juan Gris.

 Talvez a presença de Matisse, Cézanne, Ezra Pound, Sinclair Lewis, e outros profícuos artistas tenha ofuscado a ingratidão de Hemingway, o conterrâneo de Gertrude. Além disso, ela tinha muito com o que se importar, escrever, ler, resenhar obras de diversos nichos: filosofia, política, psicanálise...As ideias de Freud pululavam nas rodas dos intelectuais e não foram negligenciadas por Gertrude.

 Havia uma vida lá fora, para além das janelas do apartamento 27, na rue de Fleurus onde as paredes da sala exibiam obras de arte, hoje, com um valor inestimável. Muitas delas expostas nos maiores museus do mundo.  Foi quando Gertrude, cansada de publicar seus livros de maneira independente, decidiu submeter toda sua voracidade literária a chancela da opinião pública. Então, em 1933 e com quinze títulos nas costas, publica seu mais conhecido trabalho: Uma biografia de Alice Toklas. Gertrude assina sua própria biografia, contudo, levando o leitor a crer que a biografada era Alice e não ela mesma. Estratagema que revela apenas ao final do livro. Se a obra projetou Gertrude porque esmiuçava as maiores fofocas de Paris, ou porque a qualidade de sua escrita finalmente chegou ao grande público, nunca saberemos. Afinal, cada leitor é um crítico literário à sua maneira. O curioso é que a autora constantemente se envergonhava deste trabalho. Considerava-o de pouco valor. Parecia guardar mais apreço por Tender Bottons, de 1914, onde nadou de braçadas no dadaísmo. Dele extrai-se a frase por muitos replicada: Uma rosa é uma rosa é uma rosa é uma rosa.  

 Mas até onde iria a fama e renome de Gertrude? A mim, o fato de Gertrude e Alice terem atravessado ilesas a Segunda Guerra na Paris ocupada pelos nazistas, como um casal assumidamente homossexual, uma delas judia e com conhecido acervo artístico, é no mínimo intrigante. Teria de haver uma rede de proteção para além de sua reputação como mecenas e crítica literária. Ainda mais pelo teor do que escreveu nos anos em que Paris sofria bombardeios transfigurando seus mais preciosos edifícios. A Guerra Que Eu Vi, publicado em 1945, contrasta com a autora que defendia uma posição política no mínimo contraditória. Gertrude culpava a Revolução Industrial pelo declínio cultural do ocidente, ao mesmo tempo que defendia ideias progressistas. Quando ela e Alice se mudam para uma cidadezinha da França, fugindo da escassez, elas testemunham a deportação de várias crianças judias para Auschwitz. Período em que a França ocupada foi comandada pelo Marechal Philippe Pétain, um dos melhores amigos de Gertrude a quem ela se referia como a um irmão.

 Nossos erros de interpretação sobre aqueles que marcaram a história da arte, é patente. Insisto no produto e no acervo que deles nasceu para, enfim, ganhar a posteridade. E Gertrude apostou não só no seu produto, mas no  de muitos artistas.

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