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É cor de rosa-choque, mesmo! - Guia das Artes
É cor de rosa-choque, mesmo!
É cor de rosa-choque, mesmo!
inserido em 2022-09-20 18:30:45
Advogada e escritora. Carioca com coração mineiro.
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O ano é 1982. Tenho cinco anos e estou ouvindo minha avó cantarolar na cozinha. Não me lembro se, naquele momento, havia mais alguém no apartamento do condomínio onde morávamos em Nova Friburgo, estado do Rio. Pela janela o vento frio trazia o perfume dos eucaliptos marcantes naquela região. Era fim de tarde, eu e minha irmã havíamos chegado da escola enquanto a vovó preparava o jantar. Fazendo coro com a vovó estava apenas a Rita Lee, na vitrola, cantando Flagra. Curioso como esse dia é tão marcante para mim a ponto de trazer esses detalhes nítidos, mesmo após 40 anos. A peculiaridade, acredito, ficou por conta da voz otimista da Rita, de uma letra que a mim soava divertida e até infantil, fazendo minha avó intercalar passos coreografados entre um ingrediente e outro que jogava na panela. Da cozinha exalava um aroma típico dos preparos da vovó, um jeito de misturar as especiarias, e a mostarda talvez, que era só dela. Certamente, sobre aquele frango haveria um pouquinho de vinho branco. Ela e a Rita formavam uma dupla pra lá de feminina, meio lobas, meio fadas. Embora, tanto a vovó, quanto a Rita - que confessaria isso dali a alguns anos -, preferiam ser chamadas de bruxas. A Rita Lee foi e é, uma espécie de unanimidade na nossa família. Minha mãe também é tão Rita. Nenhuma delas, a mamãe, a vovó e a Rita tiveram medo de ser quem elas quiseram ser. Ousavam com brincões, chapéus, óculos moderninhos e sobretudos estampados. A dança, sempre foi o ponto forte das minhas ancestrais. E quando vejo a Rita em cena, pergunto-me: será que somos parentes? Risos. Bem que eu queria!

 Aí me pego lembrando que eu não podia gostar muito da Rita Lee. Minha irmã havia decidido que a Rita era dela, só dela e eu que me arranjasse com o Balão Mágico. Aceitei, acredito que por distração, essa lei arbitrada por ela. Com o passar dos anos, ao entender aquela letra toda de Flagra, ao conseguir cantá-la corretamente, inclusive conhecendo os rostos da Débora e do Gregory, descobri um jeito de carregar a Rita no peito sem contrariar minha irmã: Eu seria, também, meio fada meio bruxa. Por isso escrevo. E vivo na arte. A Rita reapareceu no dia da minha formatura, quando escolheram para mim a canção Cor de Rosa Choque. E eu adoro ser associada a ela: “Por isso não provoque, tchururu rururu.... É cor de rosa choque”. Aliás, se quiser saber a idade de alguém mostre essa cor e aguarde a resposta. A cor Rosa-choque é de 1980 para trás. Tem isso... A Rita situa a gente na História. A História da Música brasileira, a História do Brasil, a História do Feminismo, da música boa.

  Hoje percebo que aquela fada-feiticeira foi sendo para mim um objeto de estudo em vários aspectos: as letras que escrevia com seu eterno parceiro, Roberto de Carvalho de quem ela não conseguiu ficar separada por muito tempo, a relação com seus filhos, a vermelhidão de seus cabelos sendo substituída pelos fios brancos. A sua guitarra, suas poesias, suas falas e seu jeito, ao contrário de seus fios brancos, não envelhecem. É curiosa essa trajetória humana que se contradiz entre as células e o pensamento.  Isso é uma sorte para a Rita, e por conseguinte; nossa. Afinal, embora a gente passe por percalços abissais na cultura brasileira, tem sempre uma feitiçaria rolando nos estúdios, nas salas ou nas banheiras de grandes nomes da nossa música. Já tentei me colocar na cabeça da Rita. E foi como passear na Estrada das Pedras Amarelas de Oz, cair no Buraco da Alice, pousar na cauda de um cometa e acordar na cama da Joan Didion (aliás, eu vejo coisas da Rita na Joan e vice-versa). Procurem saber...

 Até hoje carrego um arrependimento que não se esgota. Ter optado por assistir a vocalista do Pretenders no Morro da Urca no lugar de um show da Rita. Putz! Que vacilo! Uma porque a tal do Pretenders foi super metida e disse na cara da gente que não cantaria os sucessos do grupo já que agora estava fazendo carreira solo, outra, porque aquele show que perdemos da Rita Lee foi memorável. Acho que foi entre 2003 e 2004, não lembro ao certo.

 Seria um show de Rock, Pop, MPB... Como saber! Rita Lee, que em geral se apresenta com o marido ( grande guitarrista) e o filho, é tudo e mais um pouco. A poliglota, multi-instrumentista, atriz, ativista, escritora e por que não... Alquimista,  é  “incatalogável”. Como resumir a vida de uma Mutante? Tem gente que não sabe, mas a Rita também é poeta. Uma poeta meio lenda urbana que a gente não sabe calcular a idade porque quando a vê pensa estar diante de uma personagem dos contos de fadas, das lendas nórdicas, do folclore brasileiro. Cabem tantas personas na Rita: a fada-madrinha meio doidinha, a fazedora de poções, a cientista de dialeto próprio, a sexóloga, e a amiga fiel. Para os mais “quadradinhos” a Rita pode até ser um Curupira. Dessas opções eu fico com a amiga fiel, daquelas que aparecem para nos fazer rir e também, cair na real. Talvez o conceito de pensar fora da caixinha tenha sido inventado por ela... Será?

 Nas composições da Rita Lee Jones (nome que herdou do pai norte-americano), há mensagens tão fáceis de assimilar. Além de tudo ela é professora. Percebam: “Toda mulher quer ser amada; porque amor é divino e sexo é animal, mesmo que seja por um doce vampiro, e é cor de rosa-choque mesmo, queira você uma vida sossegada ou não!

Aos 74 anos, morando na cidade onde nasceu, São Paulo, Rita enfrentou um câncer. Como tudo que fez na vida, encarou a tarefa de peito aberto. Do lado de cá, a gente só deseja longa vida à

nossa lenda do rock, das letras, e que ela nunca tire essa pele de ovelha negra da família.

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