O "carimbo" cultural que torna obras de arte um bom investimento vai demorar anos para chegar ao mundo dos NFTs, diz especialista
As últimas grandes vendas de tokens não-fungíveis - os chamados NFTs - em casas de leilões famosas como Christie’s e Sotheby’s podem dar a impressão de que o mundo das obras de arte acolheu a nova tendência de “criptoarte” de braços abertos, mas a realidade não é exatamente essa. De acordo com um dos maiores players do mercado de arte, as casas de leilão não são grandes formadores de opinião e os NFTs ainda não se consolidaram o suficiente na mais ampla indústria de arte.
“Os primeiros sinais que vemos no mundo das obras de arte giram em torno do que as galerias, colecionadores e curadores fazem”, disse Scott Lynn, CEO da Masterworks, que atua com serviços de investimentos em arte e fraciona trabalhos artísticos “blue chips” - termo usado na bolsa de valores para determinar as ações mais valiosas - para tornar o investimento mais acessível. “Até o momento, tudo foi muito limitado [em relação aos NFTs]. Na venda do Beeple [por 69,3 milhões de dólares], as pessoas que se registraram para o leilão foram pessoas do mundo das criptomoedas, e não da arte. O diagrama de Venn para ambos ainda está muito separado”.
Mesmo com o frenesi por NFTs que ocorreu nos últimos meses, a distância entre os tokens não-fungíveis e as obras de arte tradicionais pode ser preocupante para os investidores, criadores e plataformas em blockchain. A arte blue chip foi uma das categorias de investimento mais fortes nas últimas décadas, provendo retorno médio de 14% ao ano desde 1995. Até agora, entretanto, não há razão sólida para acreditar que os NFTs se beneficiarão das mesmas forças sociais e de mercado que mantém os preços de obras de arte sempre subindo.
Os tokens não-fungíveis estão em seu auge de popularidade, mas o mercado de NFTs de luxo em particular está apenas começando a ir além dos simpatizantes de criptoativos. O número de pessoas que pode ou quer pagar milhões de dólares por itens colecionáveis digitais é finito, e no momento as obras de arte físicas são seus maiores rivais. Em 2018, arte era o melhor investimento não-convencional para indivíduos de alta renda, superando o vinho, diamantes e selos. Caso consiga se ancorar na indústria de obras de arte, então os NFTs podem tornar seu movimento de alta no mercado mais sustentável.
“Nós vemos os NFTs mais como uma extensão do mundo cripto do que um entusiasmo do público pela arte”, disse Lynn. Scott Lynn é colecionador de arte desde os anos 90 e sua coleção é atualmente uma das maiores do mundo. A própria Masterworks, atuando em nome de clientes, é a maior compradora do mercado de obras de arte, de acordo com a empresa.
As obras de arte constituem de fato uma indústria – e uma das grandes. As vendas geram aproximadamente 60 bilhões de dólares em volume de transações por ano. De acordo com a Deloitte, o valor total de obras de arte blue chip – seu valor de mercado como ativo – é de 1,7 trilhão de dólares. Em escala, não é muito menor que os 2,3 trilhões de dólares do valor de mercado de todas as criptomoedas juntas.
Os retornos de investimentos em obras de arte também foram enormes. A arte blue chip – pinturas de grandes nomes, geralmente mortos, como Van Gogh – superou o S&P 500 em 180% de 2000 a 2018, de acordo com a Artprice. São retornos anuais modestos para o padrão NFT, mas assim como qualquer investidor minimamente decente irá te avisar, é o longo prazo que geralmente conta. Sem esse tipo de histórico, os NFTs ainda são muito especulativos do ponto de vista econômico e de investimentos.
A valorização dos NFTs seria reforçada por uma integração melhor com o aparato complexo que modela as preferências do mundo das obras de arte. Os grandes números da indústria de arte são apoiados por uma teia composta de muitas camadas de galerias comerciais, museus sem fins lucrativos, curadores, críticos, revendedores, manipuladores de arte e estagiários esperançosos. E assim como a adoção e a popularidade no mundo do blockchain dependem muito do que as pessoas estão falando no Twitter e no Telegram, o valor de trabalhos artísticos é determinado também em partes por conta do burburinho e debate dentro desse ambiente.
O burburinho é especialmente importante porque a arte e a sua qualidade são muito subjetivas, de acordo com um estudo estatístico de 2018 sobre a valorização da arte.
“A arte atrai sensações individuais, prazeres, sentimentos e emoções”, escreveu o time de pesquisa liderado por Samuel Frailberger, ex-pesquisador de Harvard que agora trabalha no Banco Mundial. “O reconhecimento depende de variáveis externas ao trabalho artístico em si, como seus atributos, o conjunto da obra do artista, a galeria onde está e a relação do trabalho com a história da arte como um todo. Reconhecimento e valor são modelados por uma rede de experts, curadores, colecionadores e historiadores da arte cujas avaliações agem como garantias para museus, galerias e casas de leilão”.
O estudo reuniu uma série de dados de obras de arte e acompanhou seus preços ao longo de grandes intervalos de tempo. A conclusão foi que a associação de um artista a instituições renomadas, em particular, galerias, teve um grande impacto no valor de um trabalho artístico no longo prazo.
“O sucesso duradouro de um artista depende de onde ele consegue que suas obras sejam exibidas”, afirma Marcus Resch, um dos coautores do estudo. “Traduzindo para o mundo dos NFTs, isso significa que apenas as artes em NFT que consigam ser exibidas em galerias ou museus altamente selecionados irão conseguir se aproveitar de um valor duradouro”.
Claro, isso não significa que as mesmas galerias de Paris e Nova York que dominam o mundo das obras de arte teriam o mesmo papel para os NFTs – na verdade, até o momento elas demonstraram pouco interesse. Algumas poucas galerias em Nova Iorque realizaram mostras de NFTs, mas foram arrivistas como a Superchief, galeria que agrada aos jovens mas que ainda está muito longe de tornar artistas famosos como a Gagosian, David Zwirner, Anton Kern ou a White Cube.
Fonte: Exame